A PREDADORA E AS PRESAS
Há dois anos, Hunter, o terceiro álbum de Anna Calvi, apresentava-se como um manifesto “queer e feminista” sobre o qual abertamentamente proclamava: “Pretendo ir além do género. Desejo não ter de escolher entre o masculino e o feminino em mim. (...) Ando à caça de alguma coisa – desejo experiências, desejo acção, desejo liberdade sexual, desejo intimidade. (...) Desejo repetir infinitamente as palavras ‘rapariga, rapaz, mulher, homem’ até lhes encontrar os limites, contra a vastidão da experiência humana. Envergo o meu corpo e a minha arte como uma armadura mas também sei que ser verdadeira para comigo é expor-me a ser ferida”. Após os belíssimos Anna Calvi (2011) e One Breath (2013), a intenção era, então, oferecer ao mundo algo de “tranquilamente audacioso e provocante, primitivo e belo, vulnerável e forte, o caçador e a presa”. Por essa altura, pouco antes de se apresentar em Lisboa, no Capitólio, tinha-nos confessado que pretendia “criar algo que fosse mais visceral, animal e selvagem e menos cerebral, textos mais imediatos e muito concentrados na ideia de conduzir até ao extremo o contraste entre as sensações de força e poder, de vulnerabilidade e intimidade” e, através desse gesto, “alcançar a máxima nitidez possível”. Uma nitidez tão grande quanto a do que, num disco “muito mais do corpo do que da cabeça”, explicitamente, propunha: “A nossa cultura está impregnada de fantasmas de mulheres enquanto objectos de caça dos homens. Quis inverter os papéis: a mulher como caçadora que se apodera da sua presa, masculina ou feminina. Basta de tolerância em relação aos limites que, supostamente, definiriam como uma mulher se deve comportar. Por que motivo haveria de aceitá-los apenas por causa da minha anatomia?...”
Nesse álbum, para além dos músicos com que, habitualmente trabalhava - Mally Harpaz, percussão e harmonium, Daniel Maiden, baixo e bateria, John Baggot, teclados – chamara também a si Adrian Utley (Portishead) e Martin P. Casey (Bad Seeds). Terá estado aí mesmo a semente do que no novo mini-CD, Hunted, foi o plano de acção: pegar em sete canções de Hunter ("Swimming Pool", "Hunter", "Eden", "Away", "Don’t Beat The Girl Out Of My Boy", "Wish" e "Indies Or Paradise") e partilhá-las com Julia Holter, Charlotte Gainsbourg, Courtney Barnett, e Joe Talbot (Idles), caçados para, por sua vez, as capturarem para si, tendo como ponto de partida, "takes" iniciais ou não publicadas de cada uma delas. Não por serem, necessariamente, melhores ou mais “genuínas” mas por oferecerem um ponto de partida diferente: “Estive a ouvir diversas versões destas canções que tinha gravado inicialmente. Hunter era um disco muito intenso e galvanizante. Desta vez, quis apresentar estas canções numa outra perspectiva mais serena e vulnerável. Em cada uma das canções, não sinto que uma versão seja mais verdadeira, mais autêntica do que a outra. É apenas uma outra forma de olhar, um outro ângulo sobre o mesmo enredo”. A escolha dos cúmplices não assentou em nenhuma particular proximidade ou intimidade pessoal: “Conhecia a Courtney Barnett e o Joe Talbot de alguns concertos em que, por acaso, tínhamos estado juntos e, uma vez, tinha ido ter com a Charlotte Gainsbourg – ela já conhecia o meu trabalho mas, quando lhe falei, não fazia a menor ideia de quem eu era – para lhe dizer quanto gostava do trabalho dela. A Julia Holter está na mesma editora que eu o que até facilitou os contactos, mas, até este momento, nunca nos tínhamos falado nem encontrado”.
Na verdade, nem em estúdio, chegaram sequer a encontrar-se, tendo sido todas as partes gravadas separadamente. Tratou-se apenas de reconhecer afinidades estéticas e de descobrir uma forma de lhes dar corpo musical: “São todos músicos e artistas que me têm inspirado e com quem desejei colaborar por sentir que poderiam acrescentar algo de importante ao espírito de cada canção. Enviei as canções a cada um deles, perguntei-lhes unicamente se gostariam de as interpretar mas não lhes dei qualquer tipo de instruções acerca de como o fazer. Permiti que procedessem como desejassem. A beleza de todo este processo foi poder receber de volta aquilo que lhes tinha enviado e ficar magnificamente surpreendida com os resultados e com as escolhas que tinham feito”. No caso de Julia Holter, a quem propôs dedicar-se a "Swimming Pool", o resultado foi especialmente surpreendente: “Não estava, de todo, à espera que ela acabasse por me apresentar aquele espantosa versão coral... foi uma surpresa maravilhosa. É, sem dúvida, um belíssimo exemplo do enorme talento e da imaginação única dela. Mas todos eles eram, verdadeiramente, aqueles que queria, todos são muito importantes para mim e senti-me muito feliz quando aceitaram o meu convite. Se fosse possível, no entanto, também não perderia a oportunidade de trabalhar com o Iggy Pop”.
Embora, antes de se dedicar a novo álbum de originais, exista ainda o projecto para um outro volume de colaborações, durante o ano passado, entregou-se à composição para a banda sonora da quinta temporada de Peaky Blinders, a extraordinária série da Netflix, (para a qual, entre diversos outros, Nick Cave e PJ Harvey também contribuiram largamente): “Queria ter a noção de quão profundamente seria capaz de entrar naquele imenso abismo negro do espírito do Tommy Shelby, a personagem principal. Explorar aquelas trevas e vulnerabilidade, aquela brutalidade e sensibilidade – algo que sempre procurei na minha música –, como se eu fosse ele. Foi uma espécie de diálogo entre nós que me conduziu a procurar inspiração na música dos westerns porque Peaky Blinders é, de facto, um western situado em Birmingham”. E, com quem gostaria de poder ter colaborado mas já não o poderá fazer? “David Bowie, Nina Simone, Jimi Hendrix, e Edith Piaf”.
5 comments:
O João também já aderiu ao "quão"!!?
De repente, temos Portugal inteiro a falar à maneira quinhentista - sem necessidade nenhuma; "quão" estava guardado na gaveta há séculos e não fazia cá falta nenhuma até a preguiça se instalar e a tradução se boçalizar...
Nunca tinha dado por isso. Mas fui fazer uma rapidíssima pesquisa e descobri que - apenas nos textos publicados no blog -, desde, pelo menos, 2011, semeio generosamente "quãos" por onde escrevo. E, já agora, "mui". E montes de vírgulas. Para não falar em advérbios. E não me arrependo.
""quão" estava guardado na gaveta há séculos e não fazia cá falta nenhuma até a preguiça se instalar e a tradução se boçalizar"
Explique isso melhor, sff.
A propósito:
https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/consultorio/perguntas/o-uso-do-adverbio-quao/32805
É que não há forma mais fácil de traduzir "how" mas, na verdade, não se usava muito em português até há pouco tempo...(Lembro-me de uma prova oral de 9º ano, nos idos de 80, em que me perguntaram o significado de "quão", num verso dos Lusíadas, pois ninguém dizia aquilo na altura.)
A meu ver - sinceramente (e nunca "honestamente", como agora também se diz por empréstimo abusivo)-, é sempre de optar por um "como", "até que ponto" ou outra paráfrase que funcione em contexto.
Então, devo ser eu que tenho uma alma quinhentista. Já desconfiava.
https://lishbuna.blogspot.com/search/label/Renascimento
:-)
Mas então O João é um "early adopter", está perdoado ;-)
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