12 November 2019

UMA ESTRADA MUITO NEGRA

  
Se, no século XIX, a homeopatia e a psicanálise puderam passar por ciência, não haveria motivo nenhum para que o mesmo não acontecesse ao “folclore” – termo utilizado pela primeira vez em 1846, numa carta de um tal W. J. Thomas para a revista “Athenaeum” – que o britânico Lawrence Gomme, fundador da Folk-Lore Society, definiria enquanto “ciência que lida com a sobrevivência nos tempos modernos das crenças e costumes arcaicos”. A intenção com que essa sobrevivência seria estimulada é que obedeceria a convicções irremediavelmente políticas. No indispensável Electric Eden – Unearthing Britain’s Visionary Music (2011), Rob Young explica que onde compositores e folcloristas como Vaughan Williams e Cecil Sharp “viam a música de um povo (i.e., de uma nação, de uma raça), para outros, mais jovens, tratava-se da música do povo. (...) Empunhando uma foice e um martelo, o cantor e folclorista A. L. Lloyd pôs os pontos nos 'i' no seu monumental estudo sobre a folk song [Folk Song in England, 1967]: ‘A mãe do folclore é a pobreza’

 

Tudo isto não poderia estar mais ardentemente presente no avassalador The Livelong Day, dos irlandeses Lankum: na aflitiva miséria de "Hunting The Wren" – acerca das comunidades de prostitutas sem abrigo, alcoólicas, ex-presidiárias, vagabundas, desempregadas, que, escorraçadas das vilas e cidades durante as grandes fomes do século XIX, viviam, no campo, em “tocas” de tojo –, na igualmente humilhada "Katie Cruel" (aprendida de Karen Dalton), ou no enforcado de "The Young People". Mas – e é isso que torna os Lankum, ex-Lynched, num caso absolutamente singular – sem investir no registo da “canção de protesto” ou, na “topical song” da velha matriz folk. E, embora em tempos tenham declarado que “folk is more punk than punk”, também não é exactamente por aí que seguem. Socorrendo-se de uma imponente bateria instrumental (violino, viola de arco, contrabaixo, harpa, guitarra, banjo, piano, Hammond, Wurlitzer, mellotron, vibrafone, "uilleann pipes", "tin whistle", concertina, "bayan" e harmonium), do timbre imperial de Radie Peat (algures entre Nico e Norma Waterson), e das sobrenaturais polifonias a quatro vozes, a banda que venera Robert Wyatt, Neu!, Can, SunnO))) e manuseia os "drones" como tela de projecção, não apenas assegura a “sobrevivência nos tempos modernos das crenças e costumes arcaicos” mas, também, os trespassa com a denúncia da “estrada muito negra a que governantes e igreja católica nos conduziram nos últimos 100 anos”.

5 comments:

Music lover said...

A propósito de folk, a Quietus publicou um artigo sobre os 50 anos de Liege & Lief.
Interessante coincidência porque acabei de ler o seu e a seguir o outro.
Complementam-se muito bem!

João Lisboa said...

"os 50 anos de Liege & Lief"

E de "What We Did In Our Holidays" e "Unhalfbricking"! Foi "o" ano dos Fairport.

João Lisboa said...

Só agora li o belo texto da Quietus. Realmente, completam-se muito bem. Além de que deu origem a um post jeitoso :-) https://lishbuna.blogspot.com/2019/11/one-autumn-evening-couple-of-years-ago.html

Obrigado.

t. said...

Alegadamente, os Sleaford Mods são adeptos. Seguindo a linha do seu texto/ensaio, tem tudo a ver.

Nota: não deixe de ir ao baú prévio. Não é menos recomendável. Em concreto, o ‘Between the Earth and Sky’ é incrível.

João Lisboa said...

"os Sleaford Mods são adeptos"

Les beaux esprits... :-)

"não deixe de ir ao baú prévio"

Tanto enquanto Lankum como Lynched. Mas este é excelente.