20 August 2019

NÃO ERA UM PEDIDO DE AJUDA? 




Ninguém está preparado para uma entrevista com David Berman. Fala-se com uma das figuras mais apaixonantes da música e da poesia norte-americanas mas, só por acidente, é esse o assunto da conversa. Desde o primeiro segundo, sentimo-nos no papel do psicoterapeuta involuntário que escuta o obsessivo e errático discurso do paciente, sem saber muito bem como reagir, se deve prosseguir ou parar logo ali. Pode começar até por uma chamada telefónica falhada porque David, no cubículo por cima dos escritórios da Drag City onde vive, estava a esculpir e não ouviu o toque. Só queríamos escutá-lo acerca da sua segunda vida como Purple Mountains, após o fim, há 11 anos, dos Silver Jews. Mas nunca poderíamos adivinhar que essa segunda vida estava a semanas de terminar, a 7 de Agosto. Pelas suas próprias mãos. 

    A primeira vez que o entrevistei foi em Abril de 2006, num café em frente ao “Scala”, em Londres, horas antes do que iria ser apenas o 14º concerto dos Silver Jews. Falou-me longamente da tremenda hostilidade que existia entre si e o seu pai e de como isso e o seu envolvimento com o judaísmo eram o combustível para grande parte da sua escrita. Dois anos depois, anunciou o fim dos Silver Jews acompanhado de um violento texto de acusação contra as actividades do seu pai como lobbyista a favor de interesses que considerava malignos. Precisou de mais de uma década para resolver tudo isso? 

Nessa altura, começava a interessar-me pelo judaismo e isso deu-me força para me opor ao meu pai. Deu-me a capacidade para distinguir entre um comportamento honrado e outro que não o era. Não conversava muito com ele e isso, de facto, alimentou um fogo em mim. É típico que o judaísmo – que continuo a respeitar como religião mas de cuja fé já não partilho – me tenha proporcionado esse ímpeto para o confrontar e afastar-me. Num mundo em que o dinheiro ou a corrupção nos conduzem a virar as costas â família ou aos valores justos, é típico que tenha sido necessária a religião para me colocar do lado certo. É terrível porque, para me identificar tecnicamente como judeu de acordo com a visão ortodoxa, ao herdar o último nome do pai, herdo também todos os aspectos negativos dele. Identificando-me como judeu filho de um pai judeu e de uma mãe cristâ, senti-me sempre como um "outsider". E, durante todos aqueles anos, tive uma banda com um nome terrível que, de início, era apenas uma piada. Tornou-se um fardo pesadíssimo que tive de carregar embora tenha acabado por compreender o que significava ser um "silver jew": um judeu que não é realmente judeu, que pertence a uma categoria secundária. O meu amigo Harmony Korine que também é um judeu casado com uma mulher cristã, teve uma filha de quem eu sou padrinho. Portanto, ela também é "silver jew". Mas, voltando atrás, quanto mais me embrenhava na leitura sobre o judaísmo, mais sentia que teria de fazer parte de uma comunidade. E, para isso, teria de frequentar a sinagoga, em Nashville. A minha mulher, como muitos católicos, tem um Freddy Krueger dentro da cabeça que lhes diz não faças isto, não faças aquilo, não vires as costas a Cristo, vais parar ao inferno... e conspirou para que eu não me dedicasse ao judaísmo. Também fui vivendo cada vez mais isolado, com um turbilhão de pensamentos... agora que voltei à actividade sinto-me bastante mais feliz, aprendi muito.



    Mas, durante estes 10 anos, parou completamente de escrever e de compor? 

Sim, só recomecei a fazê-lo nos últimos dois anos e meio. Mas nunca foi muito diferente. Entre cada dois álbuns, passavam cerca de dois anos. Depois, se pegava na guitarra, as canções apareciam. Só que, desta vez, foram sete ou oito anos de pausa. Sentia-me bastante desiludido com a música que ia ouvindo à minha volta, como se toda a gente se tivesse limitado a continuar a tocar sem se interrogar de que processo faziam parte. Compreendi que sentia um grande ressentimento por ser alguém que, não tocando ao vivo, nunca se tinha verdadeiramente afirmado no mundo da música, nunca tinha conseguido estabelecer as relações necessárias. Conhecia – e ainda conheço – apenas três ou quatro músicos. Quando tentei voltar a escrever música, decidi que não iria andar à procura de uma canção mas apenas me iria sentar e tocar um único acorde, e repeti-lo indefinidamente. Quando fazemos isso, o tempo vai passando. Foi uma espécie de reacção... a minha mãe tinha morrido, andava pela casa dela, não pegava numa guitarra há sete anos. Estava por ali uma e comecei a tocá-la. Sabia perfeitamente que o fazia para ver se a vibração da madeira e das cordas era capaz de fazer algo por mim. 

    Mas ia escutando outros músicos e bandas, ia lendo? 

Entre 2009 e 2016, passei, pelo menos, 12 horas por dia na Internet. A ver o mundo mudar, prestando atenção a tudo o que ia acontecendo. A mudar não para melhor mas de uma forma assustadora. Tentei ir-me mantendo a par no Reddit. Li centenas de livros sobre políticas públicas. Procurei informar-me ao máximo sobre as áreas em que o meu pai se movimenta, o "lobbying" a favor de multinacionais do tabaco, do álcool, das armas, queria descobrir tudo acerca do modo como aquilo que ele andou a fazer nos anos 90 nos afecta hoje a nós. De como contribuiu para que fosse possível, em Washington, montar-se campanhas tremendas, por exemplo, contra os sindicatos ou algumas ONG. Ao fim de algum tempo, compreendi a sorte que tinha tido por ter conseguido fugir ao mundo dele. É o tipo de pessoa que se apossa da nossa cabeça e é difícil de expulsar. 



    Consegui-lo foi um alívio para si, libertou-lhe o espírito para pensar noutras coisas? 

Nunca pensei nisso nessa forma mas é capaz de ter sido um processo de cura. Consegui remover a imagem dele que se tinha instalado em mim. Ele escolhera desonrar-se com uma enorme ousadia.

Quando esse processo terminou (se já terminou) foi quando decidiu regressar ao mundo e voltar a compor?  

Sim, tinha visto o outro lado, tinha compreendido que eu não era feito para actuar daquela forma. Sou diferente. Não sou capaz de atirar a matar e utilizar tudo o que for necessário para alcançar um objectivo. A poesia... é por isso que este álbum é muito mais aberto. Se existe um problema na minha vida, lido com ele escrevendo uma canção. Quando tomei consciência de que era isso que estava a fazer, a minha dor desaparecia. Mais valia, então, escrever a canção. 

    Foi um processo catártico de expulsão dos seus demónios... 

Sim, mas não podia permitir que as canções se transformassem numa coisa sentimental, havia frases demasiado carregadas de auto-comiseração, apesar de bem escritas. Não arriscaria ir tão longe mesmo que fossem óptimas metáforas. "All My Happiness is Gone", no contexto do disco é uma coisa mas, tomada apenas como uma canção individual, a persona que a canta é completamente desgraçada. Escutando a totalidade do disco, seria de uma grande pobreza de espírito imaginar que se tratava de um pedido de ajuda. Não me sinto nada culpado por aquilo que vai acontecendo na política e na sociedade. À excepção de "Margaritas In The Mall" que é acerca do mundo do meu pai no interior do qual todos vivemos. 



    Quando pôs fim aos Silver Jews “antes que a banda se tornasse imprestável”, disse que pensava dedicar-se ao jornalismo de investigação e à escrita de argumentos para cinema. No entanto, não o fez...  

Mas tentei. Só queria escrever o argumento para um filme, estava obcecado. Era sobre um poeta, filho de um lobbyista, que perde o emprego e a mulher e acaba numa clínica de desintoxicação. O pai oferece-lhe emprego mas, na clínica, estava também um jornalista que conhece a actividade do pai... a HBO estava interessada na ideia e ofereceu-me 100 000 dólares por ela mas pretendia que fosse alguém que não eu a escrever o argumento, provavelmente, para transformar a figura do pai numa espécie de herói à maneira dos Sopranos. Seria o maior favor que poderia fazer ao meu pai, ele iria adorar! Durante os primeiros quinze anos da banda, por várias vezes, ofereceram-me dinheiro para actuar ao vivo, dinheiro que me fazia falta. Sou uma pessoa bastante racional mas descobri que, quando nos afastamos do dinheiro e distribuímos aquele que temos, ele acaba por vir ter connosco. 

    Por último, por que motivo trocou Silver Jews por Purple Mountains, retirado do poema de Katharine Lee Bates para "America the Beautiful"? 

Não é possível ser os Silver Jews em 2019. É demasiado perigoso. Não quero carregar sobre os ombros tudo o que de negativo “ser judeu” implica, pelos motivos mais idiotas, aos olhos de muita gente. Por outro lado, substituí uma cor, "silver", por outra, "purple", que, apesar dos Deep Purple e New Riders of the Purple Sage, não é muito comum em bandas de rock. E também gostei da ideia de, numa música que é, praticamente, o hino não oficial dos EUA, o verso “For purple mountain majesties” ser quase sempre, erradamente, cantado “For purple mountains majesty”. Pode ser uma atitude cínica da minha parte mas imaginar multidões de pessoas, levantando-se, enlevadas, de mão no peito, para cantar uma canção patriótica com a letra errada é um pouco como eu que, agora, desejo fazer tudo certo, começar logo com um erro enorme.(Entrevista realizada a 24.06.2019)

15 comments:

alexandra g. said...

Quanto mais te leio eàquilo que leio, resultante das tuas experiências, mais considero que deverias iniciar a tua biografia, em modo auto/próprio.

Já escreves principescamente (mas repito-me), a tua vida cheia de fontes preciosas (sendo que a maior delas é mesmo tu) daria... something So Good!

Come on... :)*

__________________
P.S. - Foi sempre fácil perceber que resguardas como um leão a tua vida privada, but then, existem muitos caminhos para falar de si próprio, saberás disso melhor que eu :D

Anonymous said...

Mais um caso de édipo falhado.
E excelente criatividade!

João Lisboa said...

"deverias iniciar a tua biografia"

Dog forbid!

João Lisboa said...

"Mais um caso de édipo falhado"

O trafulha do Freud - que nem na história do Édipo acertou - não é chamado para a conversa.

alexandra g. said...

Leave the dog alone with Froido... pensa nisso (olha que és mesmo um príncipe, na escrita, e, conforme é sobejamente conhecido, a escrita não é só saber como construir umas frases perfeitas, correctas, à primário:)*

Anonymous said...

"O trafulha do Freud?"

Ficou aí? Na descoberta da máquina a vapor?

Meu caro, actualize os conhecimentos. E as referências psicanalíticas.

Anonymous said...

"Nem na história do Édipo acertou"?

Porque é que afirma que não acertou?

Teresa Silvério

t. said...

Muito obrigado pela sempre densa prosa (e por, entre muitos outros, me ter dado a conhecer o DB). Eis uns testemunhos lá do bairro (ou como ser humano nesta pôrra):

https://www.nashvillescene.com/music/features/article/21082123/friends-and-bandmates-reflect-on-the-life-of-david-berman

João Lisboa said...

"actualize os conhecimentos. E as referências psicanalíticas"

Sobre o Dr. Fraud, não há coisíssima nenhuma para actualizar. É tudo para o lixo.

João Lisboa said...

"Porque é que afirma que não acertou?"

No mito grego, o Édipo nunca QUIS matar o pai. Foi um acidente involuntário.

João Lisboa said...

"uns testemunhos lá do bairro"

Obrigado.

João Lisboa said...

"és mesmo um príncipe"

Não sou nada, sou republicano.

:-)

alexandra g. said...

Tens a quem sair, logo, quando eu afirmo que és um príncipe, na escrita/tens uma escrita principesca, tu calas-te, muito lindo, Republicano & Tudo (just like myself), e aceitas a linguagem figurada, sim?

Pronto, já repeti! :P
Teimoso... :D

Anonymous said...

"Foi um acidente involuntário."

Já vi que para si é tudo Consciente.

E, a existir algo mais, é da ordem do "involuntário".

Tem mesmo que dedicar-se mais às musiquinhas...

João Lisboa said...

Dedicar um segundo que seja à treta pseudo-científica é coisa que nunca estará nas minhas prioridades.