27 August 2019

JÁ NÃO É O MESMO RIO


Os mandalas – círculos geométricos simbólicos ou mapas rituais presentes no Hinduismo, no Budismo, no Jainismo e no Xintoismo – têm, no Budismo tibetano, uma forma de expressão particular: os "dul-tson-kyil-khor" ou mandalas de areias coloridas que, após semanas de minuciosa elaboração, uma vez concluídos, são ritualmente destruidos e a areia que os constituía lançada à água de um rio, como modo de concretização da concepção budista sobre a transitoriedade da vida material. Quando, a 29 de Agosto de 1952, John Cage entregou ao pianista David Tudor a responsabilidade de estrear os seus 4’33” de silêncio na Woodstock Artists Association – uma peça em três andamentos nos quais, sem tocar uma única nota, Tudor limitava-se a abrir e fechar o instrumento para assinalar o início e fim de cada um deles –, pretendia, essencialmente, propor três ideias: 1) o silêncio não existe (durante os 4’33” escutou-se o vento nas árvores, gotas de chuva percutindo o telhado, vozes e cochichar do público atónito); 2) música é todo o som, espontâneo ou planeado, que, em cada instante, desejarmos aceitar como tal; 3) qual "dul-tson-kyil-khor" (e sabe-se a influência determinante que as filosofias orientais exerceram sobre Cage), o universo sonoro – urbano, rural, industrial, natural, convencionalmente musical – que nos envolve não deve (nem pode) ser imobilizado nem capturado mas apenas momentaneamente acolhido.



Existirão, assim, sempre disponíveis tantos “concertos” de 4’33” (ou com outra qualquer duração) quantos quisermos, únicos e irrepetíveis. É justamente por aí que STUM433, a caixa de 5 LP com 58 “versões” (e respectivos videos) da peça de John Cage que será publicada na sequência da comemoração dos 40 anos da Mute Records (“mute”= “mudo”, “silencioso”), tropeça e falha clamorosamente o alvo: o que A Certain Ratio, A.C. Marias, Alexander Balanescu, Barry Adamson, Cabaret Voltaire, Depeche Mode, Einstürzende Neubauten, Goldfrapp, Irmin Schmidt, Laibach, Lee Ranaldo, Mark Stewart, Michael Gira, Mick Harvey, New Order, Simon Fisher Turner, Wire, e os restantes 41 artistas da editora de Daniel Miller fazem ao aceitar registar em disco as sonoridades aleatórias, "found", ambientais, mais públicas ou mais privadas, por que optaram é tão só o exacto oposto do que Cage não se cansou de explicar e que, parafraseando Heráclito, poderíamos, agora dizer “Nenhum homem se banha duas vezes na água do mesmo rio sonoro, pois já não é o mesmo rio e ele já não é o mesmo homem”.

7 comments:

Music lover said...

Não ouvi, mas o seu raciocínio parece-me muito correcto-há coisas em que não devemos tocar, se não sabe, não mexa!

João Lisboa said...

Eu também não ouvi, o disco só sai em Outubro. Escrevi apenas sobre o conceito em que assenta.

alexandra g. said...

A tua forma de pensar está mais em conformidade com o Cage e de onde ele bebeu, diria eu :)

Daniel Ferreira said...

«1) o silêncio não existe [...]»

«2) música é todo o som, espontâneo ou planeado, que, em cada instante, desejarmos aceitar como tal»

«3) [...] o universo sonoro [...] que nos envolve não deve (nem pode) ser imobilizado nem capturado mas apenas momentaneamente acolhido.»

É de admirar a genialidade de um compositor que consegue meter numa partitura três factos que já se sabem, pelo menos, desde o Neolítico. Contudo, não é de admirar a falta de originalidade (para não dizer plágio descarado). O verdadeiro autor desta música foi o primeiro hominídeo que grunhiu a alguém um pedido de silêncio para poder apreciar devidamente um som da natureza.

Adiante.


João Lisboa said...

Tem de passar-me os seus contactos no Neolítico para eu tirar o assunto a limpo.

Daniel Ferreira said...

Procure à sua volta, excepto nas claques da bola. Nem com grunhidos se fazem entender e só apreciam barulho.

João Lisboa said...

Grande ajuda...