CAGE x 2
I - 4'33"
29 de Agosto de 1952. Num concerto para o Benefit Artists Welfare Fund, na Woodstock Artists Association, o jovem pianista David Tudor, apresenta a mais recente peça para piano solo de John Cage. Coloca a partitura sobre a estante e, medindo a duração dos três andamentos com um cronómetro, sem tocar uma única nota, limita-se a abrir e fechar o instrumento para assinalar o início e fim de cada um deles. No final do primeiro (30"), escutou-se o vento que, lá fora, soprava entre os ramos das árvores. Durante o segundo (2'23"), foi o som das gotas de chuva que caíam sobre o telhado que preencheu o tempo. O terceiro (1'40") foi ocupado pelo murmúrio de vozes do público perplexo. Quando acabou, 4'33" de silêncio (na verdade, dos sons indeterminados que o habitaram), tinham acabado de encerrar um capítulo da história da música e aberto outro de par em par.
Se, até ali, desde a Antiguidade ao vocabulário do serialismo, as regras do que se deveria entender como música haviam sido sucessivamente alteradas, expandidas e pulverizadas, a partir desse instante de há cinquenta anos, música passaria a ser literalmente tudo o que cada par de ouvidos humanos, em cada momento, decidisse apreender e organizar enquanto tal. Vento, chuva, vozes aleatórias, ruido industrial, sons de síntese electrónica, mas, naturalmente também, Machault, Gesualdo, Haydn, Wagner, Charlie Parker, Schoenberg, Captain Beefheart ou os gamelãs de Java. Ou a sobreposição de tudo isso. Ou nada disso.
O conceito de "composição" não se terá propriamente democratizado (mesmo assim, continuarão sempre a existir ouvidos mais atentos e talentosos do que outros...) mas tornou-se, pelo menos, radicalmente individual e subjectivo. Exactamente como, por exemplo, esta peça (de que vos ofereço a notação gráfica) para sonoridade de dedos sobre teclado Macintosh e ruido exterior de comboios que passam na linha de Sintra. (2002)
II - O que é música?
Nunca esquecer a lição dos 4'33" de silêncio, de John Cage: a "Buddha Machine", do duo de electrónica sino-americano FM3 que não só propõe um novo suporte para os mantras lo-fi de Christian Virant e Zhang Jian, como oferece a possibilidade de jogos de cartas sonoros e "orquestras" gigantescas (para o próximo ano, na Áustria, prometem uma cimeira de mil "Buddha Machines"), será o passo mais recente nesse percurso, mas vale a pena recordar que, pelo menos desde a "Arte Dei Rumori" (1913), de Russolo, o conceito de "o que é música", já tinha começado a sofrer consideráveis abalos.
No "booklet" da reedição de My Life In The Bush Of Ghosts, Brian Eno propõe um inventário possível desse sismo intermitente: começa em 1948 com a "musique concrète" de Pierre Shaeffer (incluindo a ideia de um "orgão" constituído por doze gira-discos) e acrescenta-lhe Imaginary Landscape #4 (1951), de Cage, para doze rádios, Amazing Grace (1960), de Richard Maxfield, um trabalho de "sample" e "cut-up" sobre a voz do pregador James G. Brodie idêntico a Collage #1 (Blue Suede) (1961), de James Tenney, sobre o "Blue Suede Shoes", de Elvis Presley, It's Gonna Rain (1965), de Steve Reich ou Telemusik (1966), de Karlheinz Stockhausen, a partir de "samples" de música étnica de diversas origens. Poderia também ter incluído o concerto para buzinas de automóvel, de Laurie Anderson, num parque de estacionamento de Rochester, em 1972.
Mas, na verdadeira acepção (bastante zen) de Cage, não é realmente necessário que exista alguém que, deliberadamente, crie uma situação/concerto na qual tenhamos de nos predispor para ampliar "as portas da percepção". O satori musical está sempre, algures por aí, à espera de quem saiba tropeçar nele. O meu aconteceu, há anos, perto do Natal, na feira de S. Pedro, em Sintra: sobre a mesa de uma das tendas, quarenta ou cinquenta Pais-Natal musicais — cada um reproduzindo uma música diferente — zumbiam um interminável "drone" colectivo que, insensivelmente, se ia modificando, à medida que dois ou três se calavam e a outros tantos voltava a ser dada corda, algo como um enxame de abelhas em que, individualmente, todas eram solistas e nenhuma era virtualmente identificável. Um "Ghost of Christmas Past" que, certamente, Cage teria apreciado. (2006)
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