01 August 2019

ENCORAJAR A RESISTÊNCIA


O programa da participação de Marc Ribot na próxima edição do Jazz em Agosto será centrado em Songs Of Resistance 1942-2018, o magnífico álbum de militância anti-Trump (e anti-direita xenófoba global) que, no ano passado, espicaçado pelo desastre presidencial de 2016, publicou, na companhia de Tom Waits, Steve Earle, Meshell Ndgeocello, Syd Straw, Sam Amidon, Tift Merritt, Cornelius, Fay Victor e Domenica Fossati. O guitarrista favorito da cena "downtown" de Nova Iorque tem um objectivo claro e não poupa as palavras.

    Antes de mais, queria dizer-lhe que, na minha opinião, Songs Of Resistance 1942-2018, tanto do ponto de vista musical como no que respeita à urgência da intervenção política, foi o melhor álbum de 2018.
Muito obrigado, é um enorme elogio.

    A primeira impressão ao escutá-lo foi de que se tratava de uma muito ilustre descendência contemporânea de Liberation Music Orchestra (1970) do Charlie Haden. O que, ao ler o que escreveu no "booklet", acabei por confirmar. Pode dizer-se que um funcionou como "template" para o outro?
Não lhe chamaria exactamente "template" mas é verdade que fui sempre fã da Liberation Orchestra. Tem piada que tenha referido isso porque estou numa digressão com a Diana Krall e o Joe Lovano que tocou com a orquestra do Charlie Haden faz parte da banda. Esse é um assunto acerca do qual conversámos várias vezes. Aliás, num álbum já antigo (Don’t Blame Me, 1995), fiz uma versão de "Song For Che". Tratou-se, na realidade, de sentir a urgência de reagir a uma determinada situação política.

    É interessante porque essa peça do Charlie Haden tem um significado muito especial para os portugueses: quando no primeiro Festival de Jazz de Cascais, em 1971, durante os últimos anos da ditadura, ele – com o quarteto de Ornette Coleman – interpretou "Song For Che", dedicou-a aos movimentos de libertação das colónias portuguesas...
E foi preso, eu sei.

    Como procedeu para realizar a escolha dos temas que iria abordar no álbum, existindo um tão grande arquivo de canções políticas e da luta anti-fascista?
Desde há bastante tempo que vou incluindo no meu reportório canções de resistência ou da luta pelos direitos cívicos nos EUA. Cresci com muitas delas. Mas, para este álbum, orientei-me por duas ideias: uma era que teria de escolher canções que não tivessem apenas uma importância histórica mas que fizessem sentido e fossem relevantes agora. E esse “agora” era o início de 2017, imediatamente após a tomada de posse de Donald Trump como presidente dos EUA. A outra era procurar incluir canções capazes de se dirigirem a um grande número de pessoas, o momento exigia uma política de frente popular contra aquilo que entendi como uma ameaça do ressurgimento de ideias fascistas.

    No "booklet", também afirma que há uma explícita intenção de agit-prop. Sente que têm funcionado como tal?
Não tenho a ilusão de que, pelo facto de alguém escutar estas canções, de súbito, vá pensar que, afinal, votar em Trump não é uma boa ideia. A intenção é, de certo modo, fazer saber a quem se sente desconfortável com a situação política que vivemos que não estão sozinhos, há mais gente que pensa como elas, encorajá-las a agir. Ninguém, na época da luta pelos direitos cívicos, participou no movimento apenas porque ouviu uma dessas canções. Por exemplo, "We Are Soldiers In The Army", que está neste album, era uma canção cantada no exterior das prisões quando alguém era preso, para transmitir coragem e sentir que tinham apoio.

    E uma canção como "Bella Ciao" que o Tom Waits interpreta magnificamente no álbum, proporciona, por outro lado, um alargamento da perspectiva histórica evocando os "partigiani" italianos... 
Queria muito que essa canção fizesse parte do álbum porque é escrita de um ponto de vista muito pessoal de alguém que se junta à resistência anti-fascista, e despede-se da namorada tendo perfeitamente consciência de que poderão não voltar a ver-se. É uma canção política e de resistência mas centrada num momento de intimidade.

    Como é que procedeu relativamente à escolha de quem iria interpretar cada canção?
Para algumas canções, eu já tinha uma ideia assente sobre quem desejava que a interpretasse. Ao Tom Waits, propus uma série de canções mas ele apaixonou-se imediatamente pela “Bella Ciao”.

    Já a conhecia? 
Creio que não. Mas foi imediatamente investigar tudo que podia acerca dela e ouvir as versões originais, tal como fez com as outras.

    Todos aqueles que convidou aceitaram participar ou houve algumas recusas?
Tentei convidar algumas pessoas que, por motivos de calendário ou outros quaisquer, não puderam participar. Quando se procura gravar um álbum colectivo como este, por vezes, umas pessoas estão disponíveis e outras não. Mas toda a gente nos deu um grande apoio e nos encorajou a prosseguir. E cada um dos que participaram teve uma entrega total e incondicional.

    Houve também o caso da intérprete mexicana de "Rata de Dos Patas" cuja identidade, por receio de retaliação política, não pôde ser revelada...
Ela temia que, caso pretendesse actuar nos EUA, a entrada lhe fosse negada. Gostaria imenso de poder dizer que os receios dela não tinham fundamento mas, infelizmente, não posso.

    Com uma tal diversidade de canções e intérpretes, de que forma pensou a unidade estética do álbum?
Bem... digamos que esperei que tudo corresse o melhor possível! O Kamilo Kratc que o misturou fez um trabalho extraordinário, foi tudo concretizado um pouco em cima da hora. Tínhamos feito uma pré-mistura mas foi no desfecho final que tudo encontrou o seu devido lugar e espaço.

    Para além da questão política imediata e concreta, já contou que existem igualmente razõess pessoais e familiares que o motivaram...
Sou judeu e os meus avós do lado do meu pai eram da Polónia e Bielorrúsia. Os do lado da minha mãe eram da actual Ucrânia, relativamente perto de Auschwitz. Praticamente todas as pessoas da família alargada dos meus avós foram exterminadas pelos nazis. Não digo que Trump seja nazi mas todas as pessoas que tenham algum conhecimento da História não podem deixar de ficar bastante nervosas com ele. Aquela combinação de irracionalidade e estupidez é extremamente perigosa.


    Prevê que as próximas eleições possam correr de maneira diferente?
Apoio o candidato escolhido pelos Democratas, qualquer que ele seja. Mais do que isso: irei, voluntariamente, de porta em porta, tentar convencer as pessoas da urgência de nos vermos livres de Trump. Em Nova Iorque, toda a gente irá votar contra ele, por isso, estou disposto a ir até aos lugares onde as pessoas possam ainda estar hesitantes. É o tipo de acção verdadeiramente importante que é indispensável realizar.

    Tem um candidato ou candidata Democrata preferido?
Tenho candidatos que prefiro mas não vou falar acerca disso. Na minha opinião, qualquer um deles é melhor do que Trump. O espírito do álbum é de unidade, uma proposta de frente popular que seja capaz de nos libertar deste tipo de gente que é, realmente, uma ameaça para a democracia. Por isso, tenho os meus favoritos, vou trabalhar com eles e votar neles mas, no final, apoiarei quem for escolhido para enfrentar Trump. Há quem defenda a teoria do quanto pior melhor, isto é, que, quando alguém é realmente tão mau quanto Trump, isso poderá contribuir para acelerar as mudanças sociais. É o género de treta política que me parece demasiado perigoso considerar sequer.

    Nesta digressão europeia, tem actuado em países como a Ucrânia, Polónia, Hungria ou Itália onde existem governos de direita xenófoba particularmente assanhada...
Tenho andado em digressão com a Diana Krall. Toquei em todos esses sítios que referiu mas, tratando-se da música dela que não é abertamente política, não era de esperar reacções particularmente significativas. Mas é verdade que em todos esses países que mencionou, especialmente na Hungria, existem problemas enormes que devemos empenhar-nos em resolver, enquanto for possível, da forma que for possível.

    Gostava que desenvolvesse uma ideia que referiu, aquando da públicação do álbum: como combater o inimigo sem nos transformarmos nele?
(risos) Sim, penso que existe sempre esse perigo. Num poema, o Yeats diz “Too long a sacrifice can make a stone of the heart, o when may it suffice?” Falava da luta dos irlandeses contra o que era a opressão do colonialismo inglês da altura e dirigia-se a uma mulher por quem estava apaixonado e que desejava ver mais dedicada a ele do que à luta política. (risos) Sempre existiram canções de combate por causas justas ou injustas. E são todas muito semelhantes. Mas o que estas canções têm de mais belo é o reconhecimento da fragilidade dos seres humanos, não se satisfazem em gritar “somos fortes, vamos vencer!” Em "We Are Soldiers In The Army", o segundo verso acrescenta logo “we've got to fight although we have to cry”. "Bella Ciao" é também uma canção muito triste: o protagonista imagina a possibilidade de morrer na luta pela liberdade. Uma outra canção (que acabou por não ser incluída no álbum) do movimento pelos direitos cívicos que descobri numa compilação da Folkways, "Kingdom of Heaven", diz “I am a pilgrim of sorrow, walking through this wild world alone, I have no hope for tomorrow but I’m trying to make Heaven my home”. Era cantada para encorajar as pessoas e foi com essa mesma intenção que eu pretendi partilhar estas canções de resistência. Pode parecer um chavão mas, a verdade é que acredito na democracia e na liberdade, o meu coração está com os corajosos estudantes de Hong Kong. Se a música pode contribuir para todos estes combates, é uma coisa boa.

    Já tocou várias vezes em Portugal. Sente alguma especial afinidade pelo país?
Na verdade, a primeira vez que toquei em Portugal foi em 1982, com o Wilson Pickett. Ele perdeu um avião e, por isso, passei três dias em Lisboa. Desde essa altura, Lisboa, em particular, e Portugal, em geral, passaram a ser um dos meus sítios preferidos no planeta. Lisboa é, evidentemente, muito diferente de Nova Iorque mas é "funky" de uma forma que Nova Iorque costumava ser. Por muitas razões históricas, Portugal é completamente distinto da Europa do Norte, racialmente diverso... quando passeio pelas ruas, recordo-me de Nova Iorque. Com a vantagem de aqui poder saborear sardinhas assadas!... (Anfiteatro ao ar livre da Fundação Gulbenkian, qui, 1 Ago / 21:30 – 23:00)

6 comments:

Anonymous said...

Uma directa?...

João Lisboa said...

?

pcristov said...

Mais uma prova de que és um dos melhores entrevistadores da actualidade. Obrigado. Excelente.

João Lisboa said...

Credo!!!...

:-)

Anonymous said...

Ouvi este disco enquanto ia a caminho dos Kraftwerk(e isto serve para dizer que o homem teve lá com a Diana krall e o Joe Lovano,imagine-se,não sabia),e acho verdadeiramente estupendo,infelizmente não consigo estar em Lisboa,mas o pessoal que aproveite...e é verdade,comi uma optimas sardinhas em Cascais.João Lopes

Music lover said...

Bela entrevista.
E mais uma acha para a fogueira, cada vez temos de estar mais preocupados com a canalha que está no poder. Não há espectáculo onde não oiça o lamento dos músicos, o último foi em Amarante, com os Bixiga a implorarem a saída do Bolso. Será a música the final frontier?