30 July 2019

FORA DA JAULA 


“O que é importante é preservarmos a nossa voz autêntica. Ser verdadeiros para com nós mesmos. Pôr de quarentena a expressão ‘apropriação cultural’. Se me apetecer fazer rap... claro que vou fazer rap. Posso vestir-me como um monge... ou um junkie... enquanto faço rap. A música é uma arte. Divirtamo-nos com ela. Não tolero que me venham dizer que não posso cantar de determinada maneira porque não nasci em Timbuktu. Temos de exprimir o que sentimos. Se somos camaleões, deixemos que as nossas cores mudem e brilhem. Incorporemos novas linguagens. O que quero dizer é que resistirei sempre à ideia de que não posso jogar com formas de expressão que não provenham da minha educação ou do meu ambiente próximo. O mundo é a nossa ostra e a arte é liberdade”, dizia Jesca Hoop, há três anos, à “Folk & Tumble”. Na altura, a propósito de Love Letter For Fire, uma colaboração com Sam Beam, Hoop falava apenas do esbatimento de fronteiras entre a folk e a pop ter-se transformado numa constante da sua música. 



Mas o assunto estende-se, inevitavelmente, ao larguíssimo espectro de proibições (musicais, literárias, iconográficas, étnicas, de género) com que as inquisições do tribalismo identitário, imaginando-se intrépidas combatentes contra a pilhagem cultural do Ocidente face ao resto do mundo, não fazem mais do que – como poucas semanas após a entrevista de Jesca Hoop, a escritora Lionel Shriver alertava numa conferência em Brisbane – “abraçando identidades de grupo estreitas, encerrar-nos nas próprias jaulas em que nos querem aprisionar”. Não falando dos 40 000 anos de “apropriação cultural” a que chamamos História da Música, recordemos só que muitos dedos acusadores se viraram, por exemplo, para Paul Simon, Talking Heads ou Vampire Weekend, e, agora, dificilmente deixarão de o fazer em relação às Trash Kit. Trio feminino com as Slits, Au Pairs, Raincoats e Talking Heads a correr-lhes nas veias e Thomas Mapfumo a comandar cada dedilhado da guitarra de Rachel Aggs, Horizon é um magnificamente hiperactivo exercício de telepatia – "We play in tune not touching, we play in time not listening" –, com o Zimbabwe e Soweto num canal e o pós-punk no outro. Dirigido (mas não em exclusivo) a “young, queer and mixed race people”, vitaminado pelas ferroadas do sax de Dan Leavers (The Comet Is Coming) e pela harpa de Serafina Steer, nas gloriosas descolagens afro-psych-e-tudo-à-volta de "Disco", "Coasting" e "Every Second", avança destemido para o inferno dos “apropriadores”.

9 comments:

alexandra g. said...

Ma-ra-vi-lho-so :*

Obrigada, em nome até de quem não te leu, querido JBG.

João Lisboa said...

:-)

Carlos Natálio said...

Quer dizer anda meio mundo a tentar mandar abaixo os muros trumpianos e afins, para depois os reerguer no espaço do pensamento e expressão artística. Valha-me o outro.

João Lisboa said...

Pois...

Anonymous said...

Este texto é tão bom. Partilhei noutros lugares e ofereci a uns amigos quando li no Expresso (ou seja, enviei foto...).

João Lisboa said...

Obrigado.

Estes dois fazem-lhe muito boa companhia:

https://lishbuna.blogspot.com/2016/10/apropriacao-cultural-debussy-pagodes.html

https://lishbuna.blogspot.com/2016/01/nenhuma-bandeira-nao-estara-proximo-de.html

Ana Silva said...

Estes também seguiram para os amigos :-) (o comentário anterior era meu)

João Lisboa said...

... e mais lenha para a fogueira: https://lishbuna.blogspot.com/2007/09/tnico-o-qu-tomahawk-anonymous-1.html

alexandra g. said...

e lá tenho eu que te amar outra vez :D*