A CHAMA NUNCA SE EXTINGUIU
“Quando era miúdo e pedia dinheiro ao meu pai para ir comprar guloseimas na loja da esquina, ele dizia-me para procurar trocos nos bolsos do casaco. Invariavelmente, descobria um bloco de notas enquanto lhe vasculhava os bolsos. Mais tarde, se lhe pedia fósforos ou um isqueiro, nas gavetas, encontrava pilhas de papel e blocos de notas. Uma vez, perguntei-lhe se tinha 'tequilla' e disse-me para ir ver ao congelador onde dei também com um bloco de notas extraviado. Na verdade, conhecer o meu pai era (entre muitas outras coisas maravilhosas) conhecer um homem com papéis, blocos de notas, guardanapos – primorosamente manuscritos – espalhados (cuidadosamente) por todo o lado. Vinham de noites dormidas em hotéis ou de lojas de conveniência; os que eram dourados, de pele, vistosos ou mais sofisticados, nunca lhes dava uso. O meu pai preferia utensílios modestos. (...) Escrever era a sua razão de ser. Era o fogo de que cuidava, a chama mais intensa que alimentava. Nunca se extinguiu”, escreve Adam Cohen no prefácio de The Flame, recolha póstuma de textos do pai, Leonard.
Dividido em três partes – na primeira, 63 poemas inéditos escolhidos pelo próprio Leonard Cohen de um espólio de várias décadas; na segunda, os textos dos últimos três álbuns (Old Ideas, 2012, Popular Problems, 2014, You Want It Darker, 2016) e de Blue Alert, de Anjani Thomas (2006), para o qual também escreveu os textos; na terceira, uma recolha da vastíssima colecção de entradas dos "notebooks" –, o poema de abertura ("Happens To The Heart", 24 de Junho de 2016) é, de certo modo, a antecipação de tudo o que preencherá as cerca de 300 páginas: “I was always working steady/But I never called it art/I was funding my depression/Meeting Jesus reading Marx/Sure it failed my little fire/But it’s bright the dying spark/Go tell the young messiah/What happens to the heart”. Outras tantas páginas seriam necessárias para reflectir como se deve sobre estas canções a que apenas falta (mas se pressente) a melodia, a estes impulsos de sarcasmo e provocação (“Kanye West is not Picasso/I am Picasso/Kanye West is not Edison/I am Edison/I am Tesla/Jay-Z is not the Dylan of anything/I am the Dylan of anything/I am the Kanye West of Kanye West”), e de poético absurdo (“My lawyer tells me not to worry/Says that junk has killed the revolution/Leads me to the penthouse window/Tells me of his plan/ To counterfeit the moon”). Não serão 300 mas ficar por aqui seria imperdoável.
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