NA MONTANHA, SEM MAPA
Ryuichi Sakamoto nasceu precisamente no ano – 1952 – em que, com 4’53”, John Cage criou, instantaneamente, um antes e um depois na história da música do século XX. E não há-de ser uma coincidência que, hoje, lhe seja absolutamente natural confessar como acertar e errar são as duas faces da mesma indispensável moeda: “Quando estou a compor, toco, inadvertidamente, notas erradas. Mas isso não é um problema, pelo contrário: os erros são bem-vindos, encara-os como uma dádiva. Descobrir um som inesperado ou uma harmonia em que não tinha pensado que transformam por completo o carácter de uma música é o melhor que me pode acontecer”. E chega a ser até um pouco intrigante que nunca tenha sido comparado com Ennio Morricone: ambos músicos de formação clássica com interesse pelas práticas experimentais e de vanguarda, incursões pela pop e adjacências e contribuição importante para a música no cinema. Não será, por isso, realmente inesperado que Sakamoto – autor das bandas sonoras de Merry Christmas Mr. Lawrence (Nagisa Oshima, 1983), O Último Imperador (Bertolucci, 1987), Saltos Altos (Almodovar, 1991), Olhos de Serpente (Brian de Palma, 1998) ou O Renascido (Iñarritu, 2015) – declare, agora, a propósito do último álbum, async, que o imaginou como banda sonora para um filme inexistente de Andrei Tarkovski: “A experiência ensinou-me que o processo de compor, seja para cinema ou não, é, essencialmente idêntico. Os objectivos é que são diferentes. Se componho para mim, só tenho de me satisfazer a mim mesmo. Se o estou a fazer para um filme, sou obrigado a responder aos desejos e aos prazos – por vezes, pouco razoáveis – do realizador, do produtor, do público... é um trabalho esgotante. Por isso, escrever para um filme imaginário permitiu-me juntar o melhor dos dois mundos, embora também não fosse uma tarefa fácil ser simultaneamente compositor, realizador, produtor e público. Conheço bem o cinema de Tarkovski, gosto de todos os filmes dele mas, para este álbum, inspirei-me, especialmente, em determinadas imagens de Solaris, O Espelho e Sacrifício”.
Na origem, havia um programa: “jogar com as ideias de a-sincronismo, caos, física quântica, os números primos, as fronteiras difusas entre natural e artificial, ruído e música”. Mas como traduzir tudo isso musicalmente? “Já não é a primeira vez que experimento aproximar-me desse tipo de música, ‘async music’, já em álbuns anteriores tinha procurado ir por aí. Todos os géneros musicais – world, clássica, jazz, rock – se constroem em torno de uma pulsação central. Queria fazer algo completamente diferente e não existem muitos exemplos disso. Não é fácil imaginar música com múltiplas pulsações. A questão da inspiração recolhida no estudo dos números primos ou da física quântica decorre de serem assuntos que tenho estudado e tentado compreender e que acho extraordinariamente estimulantes. Mas os meus interesses têm vindo a deslocar-se em direcção à utilização simultânea de ‘som e música’ e não apenas de ‘música’. Tenho feito muitas gravações de campo e coleccionado uma grande quantidade de sons estranhos”. async acaba, então, por ser o ponto onde coincidem sonoridades e instrumentos tradicionais – ainda que abordadas sob uma perspectiva não convencional – e fontes sonoras diversas, numa espécie de “musique concrète” requintadamente domesticada? “É esse mesmo o conceito de async. Sempre fiz questão de manter os ouvidos bem abertos, não escutar apenas música mas todo o tipo de ruídos e, neles, tentar identificar o que contêm de música em potência. Já quando andava no liceu e tinha de ir de comboio para a escola, ocupava o tempo da viagem a escutar todos os inúmeros sons no interior do comboio. Tudo isto, claro, aprendi com John Cage”.
O plano, então, era: “Todas as manhãs, assim que acordava, recriar todos sons que me povoavam a cabeça, usando o sintetizador analógico; pegar num coral de Bach e rearranjá-lo como se escutado no meio do nevoeiro, para revelar uma lógica austera no interior de uma núvem informe; recolher os sons de coisas e lugares – ruínas, multidões, mercados, chuva; compor música cujas componentes tenham todas uma pulsação diferente”. Mas surgiram igualmente as vozes de David Sylvian recitando um poema de Arseny Tarkovsky, pai de Andrei (“I dreamed this dream and I still dream of it and I will dream of it sometime again, everything repeats itself and everything will be reincarnated, and my dreams will be your dreams (…) wave after wave breaks on the shore: there's a star on the wave, and a man, and a bird, reality and dreams and death - wave after wave, life is a wonder of wonders, and to wonder, I dedicate myself, on my knees, like an orphan, alone among mirrors, fenced in by reflections: cities and seas, iridescent, intensified”) e a de Paul Bowles gravada há quase trinta anos quando Sakamoto trabalhava na banda sonora de Um Chá no Deserto, de Bertolucci (“Because we don’t know when we will die, we get to think of life as an inexhaustible well. How many more times will you watch the full moon rise? Perhaps 20. And yet it all seems limitless”).
Mas não apenas essa: “Porque, realmente, adoro o Tarkovski, apeteceu-me ouvir aquele texto de Paul Bowles em russo. Gosto também muito de filmes chineses, porque não também em chinês? No final, acabou por ser lido igualmente em alemão, iraniano, farsi, espanhol, islandês e italiano... pelo próprio Bernardo Bertolucci”.
Não ficou, porém, por aí. Chamadas a contribuir foram também as esculturas sonoras dos irmãos Baschet (que, num dia quente de Verão, gravou, por entre corais de cigarras, na universidade de Kioto) bem como as do italo-americano Harry Bertoia que desencantou num pequeno museu de Manhattan. Na verdade, não se trata de uma estratégia omnívora inteiramente inédita na música de Sakamoto. Já em Discord (1998) - num gesto de reacção emocional às tragédias humanitárias que, na altura, tinham lugar no Ruanda e no Zaire – ele recorrera a estilos musicais diversos e diferentes media. Mas, quando o interrogo acerca da existência de alguma afinidade entre essas duas obras, praticamente reafirma aquilo que, há quase vinte anos me respondera (“A música não é um utensílio nem uma máquina capaz de interpretar o mundo real. Tem o seu próprio universo mas contém também uma gramática e uma sintaxe das emoções. De qualquer modo, em geral, não gosto de usar a música como veículo de propaganda política”): “Na altura de Discord, senti a necessidade de reagir a esses acontecimentos mundiais. Não é o tipo de atitude que, habitualmente, pense que deva tomar através da música. Mas é evidente que não posso fugir à influência que aquilo que se vai passando no mundo tem, inevitavelmente, sobre mim. Todos os dias. Não de uma forma clara e explícita mas a um nível mais profundo”.
No fundo, na raiz de async, encontrava-se algo de mais intensamente pessoal e dramático: há três anos, foi-lhe diagnosticado um cancro na garganta, actualmente em remissão (embora lhe tenha bloqueado a possibilidade de salivar) mas que, ainda assim, permanece como uma ameaça latente. As palavras do texto de Paul Bowles adquirem toda uma outra ressonância quando ele afirma “Estava convencido de que este álbum poderia ser o último que iria gravar. E não é ainda impossível que o venha a ser. Ninguém sabe quando vai morrer”. Imediatamente a sombra de Blackstar, de David Bowie, paira sobre a conversa. Mas Ryuichi Sakamoto, colocado perante a hipótese de encaramos async como um testamento final, tranquilamente, afasta-a: “Nunca pensaria na minha música como um testamento final. Gravar este álbum foi como trepar a uma montanha sem um mapa na mão. Uma vez atingido um cume, descobrimos logo outro mais à frente e não temos o fim à vista. Mas, na verdade, cada trabalho meu representa sempre a minha última vontade. Claro que o facto de ter tido o problema do cancro na garganta acentuou bastante mais essa ideia. E fez-me tomar consciência de que, na verdade, a atitude de encarar cada álbum como sendo, potencialmente, o último é, de facto, a mais correcta. Não sei se terei um ano ou dez ainda à minha frente mas claro que continuo a ter sonhos, esperanças e planos para o futuro”.
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