11 December 2015

EVERYDAY I WRITE THE BOOK 


Comecemos, então, pelo princípio. Isto é, pelo capítulo 6, "London’s Brilliant Parade": “Nasci no mesmo hospital em que Alexander Fleming descobriu a penicilina. Peço, antecipadamente, desculpa por não ter sido uma dádiva equivalente à humanidade. Há muitos lugares em Londres que oferecem a sensação de lhes pertencermos: Camden, Stepney, Hampstead, Brixton, até Shepherd’s Bush. Paddington não é um deles, a menos que se seja um urso de ficção. É um lugar de passagem, uma estação no tabuleiro do Monopólio”. Em epígrafe, “From the gates of St. Mary’s, there were horses in Olympia and a troley bus in Fulham Broadway, the lions and the tigers in Regent’s Park couldn’t pay their way, and now they’re not the only ones”. É um mapa instantâneo das origens de Declan Patrick MacManus, aliás, Elvis Costello: o hospital de St. Mary’s, à beira de Paddington e das competições equestres do Olympia Horse Show. Há uma prova do feliz acontecimento na página 406 de Unfaithful Music & Disappearing Ink: a reprodução de um minúsculo recorte de 6 linhas do “New Musical Express” de Agosto de 1954 em que o semanário “dá os parabéns a Ross MacManus, trompetista-vocalista da Arthur Rowberry Band, cuja mulher, Lillian, o presenteou com um filho na passada terça-feira. O bebé chamar-se-á Declan Patrick”.



Não é tudo rigorosamente verdade – 25 de Agosto de 1954 foi uma quarta-feira – mas isso não deverá incomodar demasiado Costello que, não sendo um efabulador compulsivo como Tom Waits, nas 670 páginas destas suas "memoirs", não se esquiva a confessar episódios nos quais, sem cerimónias, reconfigura os factos em função das circunstâncias. Por exemplo, aquele, acontecido na Casa Branca, em 2010, aquando da entrega a Paul McCartney do Gershwin Prize for Popular Song. Integrando o grupo de músicos que actuariam perante o homenageado, Barack Obama e a corte de convidados, coube-lhe interpretar "Penny Lane" que apresentou evocando quão importante tinha sido para um miúdo de 13 anos escutar no rádio, “ao lado do meu pai, da minha mãe e do gato”, uma canção “tão fantástica acerca de uma anónima rua suburbana, muito próxima daquela onde, em criança, a minha mãe vivera”. Na realidade, não havia gato algum e, por essa altura, os pais estavam já separados...



É também indispensável não contar com uma narração cronologicamente ordenada. Da vaga recente de autobiografias e memórias de medalhados estadistas do pop/rock – o primeiro volume das Chronicles, de Dylan, a Autobiography, de Morrissey, Girl In a Band, de Kim Gordon –, Costello tende mais para o estilo-Dylan: ora está a justificar a sua má reputação inicial por culpa do maldito diastema (“parece que o espaço entre os meus dois dentes incisivos, que fizeram Jane Birkin, Ray Davies e Jerry Lewis tão atraentes, teve o efeito de fazer soar metade do que digo como uma provocação ou um insulto”); ora salta para o meio da década de 80 e, ele que se reivindica perito em “sentimentos de culpa católicos”, faz público acto de contrição acerca da sua condição de predador sentimental (“Escrevi cartas, seduzindo raparigas diferentes, levando-as a acreditar fosse no que fosse que desejassem acreditar (...) Depois, escrevi canções tentando convencer-me que o fazia em busca do amor e não apenas das boas e velhas luxúria e cobiça e de mais dois ou três dos restantes pecados mortais”); ora, ao longo de 20 assombrosas páginas faz desfilar uma História viva da Irlanda-Reino Unido-EUA iniciadas com o bisavô, John MacManus (“que, como muitos irlandeses nascidos nos anos da Grande Fome, se safaram da Irlanda mal tiveram idade para isso”), continuadas com o avô, Patrick – entre as carnificinas da primeira guerra mundial e da guerra de independência da Índia, e a carreira como executante de trompa que, a bordo do White Star Liner, terá conhecido Duke Ellington – e, depois com as perturbadas evocações do pai, já doente de Parkinson, sobre os anos da Grande Depressão, quando “muitas coisas tiveram de ser cortadas ao meio: a força de trabalho, o salário, o pão”.

Mom, dad, Declan & no cat
 
Dispersas um pouco por todo o livro, há elucubrações teóricas sobre o que distingue bandas inglesas e americanas (“As melhores bandas inglesas preocupam-se mais com ‘como começamos?’ do que com ‘como acabamos?’”); inventários detalhados de onde e a quem foram surripiados arranjos, melodias, riffs, introduções; desabafos como o de nunca ter conseguido convencer nenhum dos seus primeiros comparsas a escutar um álbum de David Ackles; as cumplicidades diversas com Dylan, Robert Wyatt, Allen Toussaint, Bacharach, Chet Baker, Johnny Cash, Diana Krall, T Bone Burnett; as dementes digressões com os Attractions através da América; a figura sempre presente e ausente do pai – perdido à procura de uma estrofe para "This House Is Empty Now", de Painted From Memory, sintetiza o espírito de Unfaithful Music & Disappearing Ink em duas frases: “Tinha, agora, de encontrar ainda mais palavras. O meu pai entrou no meu quarto quando eu tinha oito anos e ofereceu-mas”.


Poderia ser um momento cinematográfico como são, aliás, inúmeros outros no decurso dos 36 capítulos. Até porque ele cuidou de que, para eles, existisse a banda sonora adequada: um duplo álbum (quase) homónimo com outros tantos temas da sua discografia mais dois inéditos – "April 5th", com Rosanne Cash e Kris Kristofferson, e "I Can’t Turn It Off", relíquia dos primórdios assinada por D. P. Costello. Afinal, exactamente o mesmo tipo que escreveu “I'm a man with a mission in two or three editions, and I'm giving you a longing look, everyday, everyday, everyday I write the book”.

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