TRIVIALIDADES
A vicentina Annie Erin Clark só nos fala de coisas comuns. A banalidade do dia-a-dia (“Oh what an ordinary day, take out the garbage, masturbate”); o susto de, ao passear nua pelo deserto do Texas, tropeçar numa cascavel que escava buracos na areia “as if Seurat painted the Rio Grande” (quem nunca tiver pensado em pintores impressionistas quando, no estado de natureza, caminha por entre dunas e répteis, que atire a primeira pedra); a conversa nocturna com o fantasma do Black Panther, Huey Newton, provocada por uma dose legal de tartarato de zolpidem tomada em brava luta contra o jet-lag (acusem-na aqueles que jamais foram vítimas das imidazopiridinas); as mais que sensatas opções teológicas decididas sob o estado de paixão (“I prefer your love to Jesus”), por muito que Theodore Twombly, do Her, de Spike Jonze, insista que “falling in love is a crazy thing to do, It’s kind of like a form of socially acceptable insanity”; a universal culturinha digital voyeurista-exibicionista (“Digital witnesses, what's the point of even sleeping? If I can't show it, you can't see me”); a pura trivialidade, até, de atribuir o título St. Vincent ao álbum de alguém que assina com o "nom de plume" St. Vincent.
O que torna tudo um pouco mais esquinado, contudo, é descobrir como isso é suposto acomodar-se no interior de uma gravação que se propõe como “a party record that could be played at a funeral” e onde o método de resolução de problemas se aplica na criação de objectos singulares e coerentes a partir de uma matéria-prima que pode começar em Bowie ou Stravinsky e prolongar-se por Prince, os Pantera, a tradição turca de Selda Bağcan e os Meters. O ponto de chegada – contornando, pelo caminho, os alçapões perigosamente próximos do prog-rock – haverá de ser aquela bissectriz equidistante da “acessible pop music and the lunatic fringe” que muito melhor do que quaisquer elucubrações, o videoclip de "Digital Witness" traduz visualmente: em cenário distópico construído de peças soltas da Metropolis, de Fritz Lang, e da Tativille, de Playtime, uma inquietante personagem (St Vincent), sonâmbula e robótica, inspirada em El Topo, de Jodorowsky, comanda, à distância, os movimentos sincronizados de um pequeno exército de "Untermenschen". “This is no time for confessing, I want all of your mind”, invectiva-os. Mas os riffs de sopros, irremediavelmente funky, proíbem a imobilidade da cintura para baixo.
4 comments:
João Lisboa desculpe o despropósito: de que falamos quando falamos de “os alçapões perigosamente próximos do prog-rock”?
Não é da Canterbury scene, nem de gente próxima deles (King Crimson, por exº), presumo. Ok, eram a excepção à regra e o prog-rock está (mais) associado a outras bandas.
Digo isto porque descobri (via Ricardo Saló nas suas escolhas das reedições de 2013) mais um grupo interessante dessa “categoria”: Cressida (1970/71).
Além disso o grupo e o disco que mais quero conhecer neste momento ( e agora é tão fácil de o fazer!) é Hatfield and the North (1973).
Pelo menos depois de ouvir a St Vincent…
Manuel Carvalho
Uma escrita principesca :)
__
p.s. - e, desta vez, gosto muito do cabelo dela.
"Não é da Canterbury scene, nem de gente próxima deles (King Crimson, por exº), presumo. Ok, eram a excepção à regra e o prog-rock está (mais) associado a outras bandas"
Voilá (sort of).
(olha!... o regresso dos comentadores com cérebro... :-) )
Que outro regresso aconteça. Menos "posts de facebook" e mais música.
Post a Comment