04 March 2013

HÉROUVILLE, 1971
(sequência daqui)


José Mário Branco conheceu José Afonso numa noite de 1969, em Paris. Um, emigrado político, cantava numa colectividade dos subúrbios, o outro, recém-chegado de Portugal, actuava no auditório do Foyer International des Étudiantes, no número 93, do Boulevard Saint Michel. Mas Branco não ousou desperdiçar a oportunidade de se encontrar com aquele que era já o nome maior da música popular portuguesa e uma das figuras da oposição ao Estado Novo. Contudo, embora, a partir daí, Afonso tenha passado a actuar como mensageiro entre José Mário e a editora Sassetti, através da qual Mudam-se Os Tempos, Mudam-se As Vontades acabaria por ser publicado, só dois anos mais tarde a colaboração musical entre ambos se estabeleceria: José Mário Branco produziria Cantigas do Maio que, entre 11 de Outubro e 4 de Novembro de 1971, seria gravado nos Strawberry Studios do Chateau d’Hérouville, a 30 quilómetros de Paris, lugar com "pedigree": castelo do século XVIII, construído pelo arquitecto da escola de Roma, Gaudot, na proximidade dos campos onde Van Gogh pintou algumas das suas últimas obras, tinha sido comprado pelo compositor Michel Magne que o convertera em estúdio. Viria a ser utilizado pelos Pink Floyd, Grateful Dead, Gong, Jethro Tull, MC5, David Bowie e Iggy Pop e, nesse ano, por José Afonso que, ali, registaria um dos discos-chave da música portuguesa.


"Grândola Vila Morena" seria a quinta faixa do álbum. Quando Zeca apresentou a José Mário Branco, como costumava dizer, “uma coisa que inventei”, este sugeriu-lhe realizar não exactamente um arranjo mas antes uma encenação sonora, um exercício de estilo sobre o canto alentejano. Uma vez que a melodia se assemelhava a uma toada do Alto Alentejo (menos pesadas na letra e na música do que as do Baixo Alentejo), ela seria concretizada desse modo, para o que seria necessário trabalhar a letra no sentido de lhe impor as inversões de versos que lhe são típicas. A estrutura coral característica com o alto, o ponto (ambos cantados por José Afonso) e o côro (Zeca, Zé Mário, Francisco Fanhais e Carlos Correia/Boris) a responder, estabeleceria a forma final. Foi também proposta de José Mário Branco a inclusão da sonoridade dos passos (gravados pelos quatro, sobre a gravilha, no local das antigas cavalariças), replicando o que tinha visto, enquanto jovem, em Peroguarda, quando os camponeses vinham da monda, pela estrada, abraçados, arrastando um pé e pousando, um tipo de cadência de cantar, andando. Pelo meio, "Grândola" perderia uma quadra ("Capital da cortesia, não se teme de oferecer, quem for a Grândola um dia, muita coisa há-de trazer"), ganharia outra ("À sombra de uma azinheira, que já não sabia a idade, jurei ter por companheira, Grândola, a tua vontade") mas, acima de tudo, adquiriria o estatuto de ícone sonoro de um momento irrepetível.

2 comments:

Rui Gonçalves said...

Um texto formidável, sobretudo quando lido em conjunto com o seu irmão gémeo «Na rua, de novo», onde se prova que a função do crítico também é transmitir conhecimento. Comparado com isto, o resto da nossa crítica musical ainda está na fase da papa cerelac...

alexandra g. said...

(perante isto, acho que ainda ando pelas redondezas de Moulinsart, a minha ignorância colhendo trevos e bichos de contas)