O ACTOR EM CONSTRUÇÃO
Bonnie “Prince” Billy & The Cairo Gang - The Wonder Show Of The World
Além da viúva-Love e da editora, que raparam o fundo ao tacho do catálogo dos Nirvana até nem uma só partícula restar (quer dizer, nunca se sabe… há sempre umas "outtakes"-de-"outtakes" prontas a ser exumadas), ninguém deve ter rentabilizado melhor o rigor mortis de Kurt Cobain do que Will Oldham. É verdade: tinha ele acabado de publicar o álbum de estreia There Is No-One What Will Take Care of You sob o primeiro dos "noms de plume", Palace Brothers, quando foi convidado para, pela assombrosa soma de mil dólares, fazer a primeira parte dos Nirvana, na quarta edição do festival Lollapalooza, de 1994. Aconteceu, entretanto, que, por esses dias, Cobain achou mais interessante explorar as possibilidades de nirvana radical que se esconderiam no cano de uma caçadeira carregada e isso teve como consequência que o futuro Bonnie Prince se visse promovido um degrau acima no cartaz do festival, com o correspondente bónus de duzentas e cinquenta verdinhas. O jovem Will não era propriamente indigente – o pai era advogado em Louisville, Kentucky, a mãe, artista amadora (seria dela o desenho naïf inspirado nos Lutadores, de Courbet, que, em 2008, ilustrou a capa de Lie Down In The Light) – mas, para um “appalachian post-punk solipsist” de vinte e quatro anos, acabadinho de aspirar, pela primeira vez, o odor dos estúdios, cada cêntimo era ouro.
Tudo nele, é importante dizer-se, era, desde o início, o absoluto oposto da redescoberta das raízes “espontâneas”, “autênticas” e muito "old, weird America" que, enquanto suposto pioneiro da coisa freak/folk/country/new americana, lhe quiseram colar à pele. Não foi por acaso que os seus primeiros passos foram como actor: estudou no Walden Theatre, pisou o palco do Actors Theatre, de Louisville e, até hoje, continuámos a vê-lo no cinema em Junebug, Old Joy ou Wendy And Lucy. Há uma razão para as sucessivas assinaturas “Palace” (Palace, Palace Songs, Palace Music, Palace Brothers): as personagens de Cannery Row, de Steinbeck, habitavam a decrépita Palace Flophouse. O “Brothers”, de Palace Brothers, descende, em linha directa, dos Louvin Brothers e dos Everly Brothers. Bonnie “Prince” Billy é uma justaposição de Bonnie Prince Charlie (o pretendente setecentista aos tronos da Inglaterra, Escócia e Irlanda) e Nat King Cole. E, se, relutantemente, aceitou dedicar-se à música foi porque, como confessa, acabou por compreender que “tal como um filme ou um livro, a música é uma construção. Não se trata de alguém que canta sobre a própria vida mas de uma pessoa que aprendeu um ofício”. O ofício dele aprendeu-o com a santíssima trindade Merle Haggard, Leonard Cohen e R. Kelly. A construção da própria personagem, laboriosamente realizada em mais de uma centena de gravações (álbuns, EP, registos ao vivo, singles, versões e colaborações) obecedeu a uma regra, evidentemente, declinada na terceira pessoa: “Ele (Bonnie Prince) irá cantar canções que têm estrofes, refrães e pontes. Como um escritor de canções do Brill Building ou de Nashville”.
Assim foi. Quase sempre magnificamente. E aquela versão que, agora, apresenta de uma country/folk confortavelmente rústica mas, nem por isso, menos disciplinadamente carpinteirada – algo entre o classicismo CSN&Y e o neo-medievalismo dos Fleet Foxes –, capaz de abrir um álbum com as palavras “I once loved a girl but she couldn’t take that I visited troublesome houses, she said when I got home, to leave her alone, she could taste trouble in my mouth” e de o encerrar pregando “Always choose the noise of music, always end the day in singing!” é só mais um capítulo da sua ficção privada.
(2010)
06 June 2010
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4 comments:
«entre o classicismo CSN&Y e o neo-medievalismo dos Fleet Foxes»
Não se pode dizer que as fontes sejam muito inspiradoras...
refrães ... ou refrãos?
Refrães. Quando, depois de anos a rescrever "refrões", descobri, foi um choque. Suponho que poderá ter origem francesa, "refrains". Mas é só suposição.
Obrigado! Vou tb estudar o assunto.
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