01 August 2008

ANTES E DEPOIS DA MPB



Caetano Veloso - Estrangeiro




João Gilberto - O Mito

Garanto que sabia. Juro que estava à espera. Não poderia prever a data precisa mas adivinhava que, mais tarde ou mais cedo, seria inevitável: Caetano Veloso haveria de ser capaz de conceber e concretizar um álbum capaz de pôr os cabelos em pé aos incondicionais da MPB. Foi agora mesmo. Já está feito e é brilhante. A estratégia foi exemplar. Depois de ter passado meia vida a demonstrar com sucessivos exemplos práticos como a MPB não tinha obrigatoriamente de estar condenada a uma trajectória de banalização progressiva, dinamitando-lhe sucessivamente os códigos de linguagem e a cristalização dos limites aceites, com Estrangeiro, de um só golpe, é a própria ideia de MPB que fica posta em causa. A colocação da carga de explosivos em pleno centro do teatro de operações tem responsáveis inesperados mas comprovadamente perigosos: Arto Lindsay e Peter Sherer do destacamento de guerrilha sonora nova-iorquino, Ambitious Lovers, assistidos de perto por Marc Ribot (co-piloto de viagens diversas de Tom Waits, Costello, Maria McKee e ex-co-artilheiro de Lindsay, nos Lounge Lizards), Bill Frisell (notório ao lado de John Zorn, entre uma multidão de outros exploradores de paragens longínquas) e Naná Vasconcelos. Os dois primeiros, para além de participarem como instrumentistas, também asseguram os cuidados de produção e a resultante é o disco mais surpreendente oriundo do Brasil nos anos oitenta. Não restavam demasiadas dúvidas sobre o facto de os textos e melodias de Caetano Veloso pertencerem já, por inteiro, ao património mais nobre da língua e da música de expressão portuguesa. Agora, fica também claro aquilo em que nem todos tinham ainda reparado: na cena ampliada da música do planeta, contam-se pelos dedos de uma mão os que se atrevem a tocar de perto "mano Caetano". O desfibramento da linguagem no plano dos poemas (alguém duvida que o são?) que sempre foi uma constante na obra de Caetano Veloso transpõe-se, aqui, de uma forma decidida, para o coração da própria música. Sob a superfície só aparentemente tranquila das melodias e do puzzle móvel de palavras, trabalha, subterraneamente, em Estrangeiro, uma tempestade eléctrica de descargas, acelerações e electrochoques sonoros que desmontam, pelo avesso, o corpo descarnado das canções. Como se a inquietude que assaltava os textos não se pudesse mais acomodar aos formatos tradicionais e tivesse contagiado a música com as angulosidades, assimetrias e dilacerações que, por dentro, a habitavam, desfigurando, do interior, a suave perfeição "tropical" habitualmente esperável.



Todo o disco pode ser decifrado a partir da pequena frase que, quase clandestinamente, se insere (entre parêntesis e em inglês) no final da faixa-título: "Some may like a soft Brazilian singer but I've given up all attempts at perfection". O que é apenas outra forma de dizer que, para salvar um corpo doente, por vezes se impõem modalidades severas de cirurgia radical. Estrangeiro não é mais nem menos do que isso: golpe profundo na placidez do aconchego autosatisfeito da MPB, separando, mais uma vez, as águas como, desde a época do Tropicalismo, Caetano se habituou a fazer. Nele se acha o ponto exacto de encontro dos percursos de Lindsay e Veloso, da troca e tradução simultânea de vocabulário que, de Norte para Sul e de Sul para Norte do continente americano, ambos aqui protagonizam, na margem mais produtiva da música de ambas as geografias. Sobre os textos, faltaria acrescentar que todos sem excepção reforçam a exigência que, há muito, a produção de Caetano impõe: compilação e edição autónoma como exemplo contemporâneo absoluto de tudo o que à língua portuguesa é permitido explorar, nos limites de um discurso poético inteiramente original, articulado, sem o menor atrito, com a autonomia e as exigências próprias do objecto musical. Completamente isoláveis sem perdas e estreitamente unidas com vantagem dobrada, palavras e música de Estrangeiro correm, simultaneamente, no mesmo sentido e em direcções diferentes, forçando até ao extremo as linhas de tensão que suportam a arriscada manobra global.



Ao lado, antes e depois do teatro de guerra onde se desenrolam estas fabulosas operações, pode encontrar-se a histórica reedição da obra gravada de João Gilberto entre 58 e 61, quando, através da "invenção" da bossa-nova, tinha início a longa caminhada que haveria de desembocar, trinta anos depois, na inversão radical da lógica de partida. O Mito é-o duplamente. Pelo lugar decisivo que este conjunto de temas e interpretações ocupou no período fundador da música moderna brasileira (de Chega de Saudade em diante) e pela ideia de inacessível perfeição clássica que passou a definir como modelo para sucessivas gerações de compositores e intérpretes, código de conduta a invocar tanto em tempo de paz como de insurreição estética: o estrito minimalismo emocional de voz sussurada e violão sobre fundo de veludo orquestral, a enganadora simplicidade melódica sobre areia movediça harmónica e a elíptica ironia "cool" que refrigerou e abriu para o futuro e para o exterior uma música redobradamente mestiça.



Há-de haver certamente, fora do círculo de devoradores fiéis da História da MPB, quem queira considerar esta recapitulação como mera curiosidade de arquivo, exclusivamente dirigida a incondicionais e fanáticos. A esses, seria de aconselhar uma educativa viagem de circumnavegação por La Varieté, dos Weekend, e The Prince Of Wales, de Alison Statton, passando pelos primeiros Everything But The Girl e adjacências do "british jazz revival", com convite incluído para a detecção das óbvias afinidades e prolongamentos extracontinentais a que João Gilberto deu origem. Se acontecer que o local de chegada seja Estrangeiro, significa apenas que, por entre o labirinto dos mapas, mais uma expedição de aventura e descoberta se concluiu com êxito.

(1989)

4 comments:

Anonymous said...

Talvez o melhor disco de Caetano (se não for este é o «Livro») e o primeiro álbum que comprei dele. Portanto, duplamente revelador. Só a partir daqui comecei a olhar para trás e, simultaneamente, a seguir em frente. E, passo a passo, vou-me convencendo mais que o Caetano é o maior escritor de canções (no duplo sentido de músico e poeta) de língua portuesa (e quanto ao resto, mais tarde falaremos). O óptimo texto do João é que não conhecia. Naquela altura, para mim, era apenas um «gajo» que escrevia umas coisas esquisitas sobre música...

Anonymous said...

portuesa? Acho que portuguesa soa melhor...

Manuel said...

Notas avulsas (sem qualquer interesse, aliás) e 1 ou outro pedido


Texto que justifica ser postado – como complemento a este - é a recensão feita pelo João Lisboa ao disco de Chico Buarque desse mesmo ano. Depois de o lerem verão porquê.

No tempo da rádio, em 1989, Ricardo Saló abriu uma emissão do programa Janela Indiscreta (não juro que fosse esse o programa) com “It only has to happen once” do álbum Greed dos Ambitous Lovers seguido de “Jasper” do Caetano Veloso, último tema do lado 1 de Estrangeiro. Não esqueço. Gravei uma K7 com essas 2 canções seguidas de “Beatiful red dress” do álbum do mesmo ano da Laurie Andress e “All men are hells” de Seigen Ono (com John Zorn, Sussan Deihim, Jill Jaffe…) e não recordo que mais. Talvez o Ryuich Sakamoto de “Beauty”. A K7 levou o nome de Nova Iorque fora de horas. Não garanto que não o tenha plagiado em qualquer lado…
No final desse ano, quando JL e RS fizeram o balanço dos anos 80 num texto excelente, “O caminho da glória” (que post que dava…) referiam “Do cimo do Empire State vê-se tudo, e o futuro não é excepção” E falavam de Laurie, Lurie, Zorn, Arto, Branca etc.


“O óptimo texto do João é que não conhecia. Naquela altura, para mim, era apenas um «gajo» que escrevia umas coisas esquisitas sobre música...”
Comecei a ler as recensões de João Lisboa em finais de 1985. A partir do ano seguinte deixei de comprar os discos dos Genesis, Yes e outros assim (era um adolescente influenciado pelos vizinhos mais velhos, que querem?!) e comprei o 1º disco dos Violent Femmes, o Cover do Tom Verliane, Ocean rain dos Echo e Victorialand dos Cocteau Twins.
Uns meses depois… Throwing Muses. O disco que mais ouvi nesse ano. Bom post o texto em que os (as) juntava com as vozes búlgaras…

Manuel Carvalho

João Lisboa said...

"Texto que justifica ser postado – como complemento a este - é a recensão feita pelo João Lisboa ao disco de Chico Buarque desse mesmo ano. Depois de o lerem verão porquê"

"No final desse ano, quando JL e RS fizeram o balanço dos anos 80 num texto excelente, “O caminho da glória” (que post que dava…)"

"Uns meses depois… Throwing Muses. O disco que mais ouvi nesse ano. Bom post o texto em que os (as) juntava com as vozes búlgaras…"

Só me dás é trabalho... lá tenho eu de ir à despensa revolver a papelada (se estiverem lá)...