20 June 2008

O MUNDO JÁ NÃO ERA O QUE É



Hoje, é perfeitamente claro: desde o fim dos anos 50/início de 60, está em marcha uma conspiração com o objectivo de apagar da História da música a pop-antes-da-pop. Dirigida pela maçonaria da «nova pop» contra a «velha pop» e pelo rock contra tudo aquilo que o antecedeu, só fugazmente a memória do que era a música popular anterior a essa época é autorizada a vir a superfície. Sob o imenso guarda-chuva do «easy listening» (ou «muzak» ou «música de fundo» ou «música ambiente», ou «música para elevadores» ou...) foi deliberadamente lançado em arquivo morto tudo o que sucedeu antes da era inaugurada pelo rock'n'roll, considerando essa pré-história como mero «entretenimento ligeiro» que uma geração posterior de «artistas» animada de uma superior missão estética haveria de sepultar no caixote de lixo da História. Por acaso, a verdade não é bem essa. A «velha pop» não era mais «ligeira» ou mais «séria» do que a «nova» e nem sequer as tradições de que se inspiraram eram tão diferentes uma da outra. Num e noutro caso, convergiram as heranças da música branca, negra e do resto do mundo, numa como na outra se revelaram notáveis músicos, autores e compositores. Tudo o mais decorre apenas dos cíclicos fenómenos de moda e, se hoje (por um desses inexplicáveis eternos retornos de que só Zeus e a indústria discográfica conhecem os segredos), o tal «easy listening» parece estar de volta, não é isso que o vai tornar mais ou menos respeitável.


Andy Williams - "Music To Watch Girls By"

Já se sabe que Bach, Mozart, Satie, Debussy, Chet Baker, Tom Jobim ou Brian Eno não teriam considerado como insulto chamar-se «música ambiente» a muitas das peças que escreveram. Convém agora que se perceba igualmente que o «easy listening» propriamente dito também não tem de se ofender por ser assim tratado. E o momento para isso não podia ser mais adequado com toda uma série de velhas jóias a serem trazidas à superfície e, de novo, expostas à curiosidade de quem com elas nunca travou conhecimento. Pode começar-se mesmo pelo princípio, isto é, por um CD da respeitabilíssima editora Hyperion, totalmente dedicado aos British Light Music Classics, interpretados pela New London Orchestra, dirigida por Ronald Corp. Façam então o favor de descobrir, entre outros, os notáveis Archibald Joyce (1873-1963, «the british waltz king»), Sydney Baines (1879-1938, director da trupe de «dancing girls» do Palace Theatre), Albert William Ketelbey (1875-1959, expoente da «música narrativa exótica»), Eric Coates (1886-1957, rei da rádio e criador de música para espevitar os ritmos laborais), Charles Williams (1893-1978, «film, radio and TV musician»), Ronald Binge (1910-1979, inventor das «cascading strings» na orquestra de Mantovani) ou o «jovem» Robert Farnon (1917, autor do tema mais utilizado de sempre em genéricos, «Jumping Bean»). Estão lá todos e ajudam bastante a introduzir um certo sentido de perspectiva e a definir uma linhagem ilustre.


Xavier Cugat - "She's a Bombshell from Brooklyn"

Depois, há o verdadeiro baú do tesouro: a sumptuosa colecção de 12 CD da Capitol * que dá pela designação genérica de Ultra Lounge. Minuciosamente concebida e executada (do grafismo, aos textos, ao «artwork», à selecção de materiais e à organização temática), todos os títulos, do primeiro ao último, exigem ser referidos de tal modo são auto-explicativos: Mondo Exotica, Mambo Fever, Space Capades, Bachelor Pad Royale, Wild Cool and Swinging, Rhapsodesia, The Crime Scene, Cocktail Capers, Cha Cha De Amor, A Bachelor In Paris, Organs In Orbit e Saxophobia falam por si próprios. O que, traduzido por outras palavras, equivale a um verdadeiro luxo asiático daquela imensa variedade de músicas que, entre ritmos latinos, variedades francesas, vaudeville, êxitos da Broadway e do cinema, «crooning», jazz e swing bands, «torch songs», exotismos, futurismos e experimentalismos diversos, constituiram a dieta sonora jndispensável antes (e, num universo paralelo, durante e depois) de E1vis Pres1ey ter subido ao trono.


Joi Lansing - "Web Of Love"

Os textos introdutórios de R. J. Smith combinam sabiamente erudicão e humor fino, o fundo da caixa de cada disco é uma muito apropriada reprodução de pele de leopardo e, em todos, existe a sugestão do «cocktail» adequado (e respectiva receita) para acompanhar a audição. Nos 12 títulos, há varias presenças recorrentes (gigantes como Martin Denny, Les Baxter, Yma Sumac, Julie London, Nelson Riddle, Dean Martin ou Billy May) e é absolutamente necessário saborear as deliciosas ilustrações de Tommy Steele e Andy Engel bem como os «headlines» e textos de contracapa que sintetizam cada álbum. Exemplos avulsos: The Crime Scene anuncia «Spies, thighs & private eyes», Cha Cha De Amor situa-se «From Mamboland to Bossanovaville» e Saxophobia promete «A horn-a-copia of sax-ual delights», enquanto nas costas de A Bachelor In Paris se explica o seu conteúdo como «eighteen vintage hi-fi ensembles from our designer vaults styled with a continental flair. Haute couture! C'est magnifique! C’est si bon! Vive la diffférence! Vive la France! French fry! French toast! Ooh-la-la ma chérie! Bon appetit! Voilá!». A atenção ao pormenor e à encenação de cada conjunto de temas é exactamente o que se desejaria num arquivista enciclopédico que, em simultâneo, dominasse a ironia «kitsch» e a arte do «marketing» superiormente culta. Em suma, o género de colecção que qualquer hedonista digno desse nome revolve céus e terra para lhe chamar sua.


Martin Denny - "Quiet Village"

Mergulhando um pouco mais em profundidade no catálogo da Capitol, há ainda o magnífico duplo The Exotic Sounds of Martin Denny, compilação de música do criador do universo sonoro «exotica», uma espécie de «world music avant la lettre», concebida por desígnio divino no Havai, na esplanada do Dagger Bar, de Don the Beachcomber. Denny tinha nascido em Nova Iorque e estudado com tão insignes mestres como Doctor Wesley La Violette (professor de piano e contraponto, fervoroso crente na teoria da reencarnacão e tradutor do épico sânscrito Bhagavad Gita) e Doctor Arthur Lange (especialista da instrumentacão para «small combo» e expoente máximo da sinestesia tal como a Sociedade Teosófica a entendia). No início, enquanto pianista, acompanhou luminárias extraordinariamente ignoradas com The Incomparable Hildegarde, mas foi em Honolulu que lhe ocorreu a ideia de conjugar timbres polinésios, africanos, orientais, árabes, vibrafones jazzy, o coaxar das rãs, o canto dos pássaros e uma visão do mundo como Disneylandia sonora, para fornecer o pano de fundo musical sob o qual os turistas debicavam pipocas e lendário surfista Duke Kahanamoku bebericava Blue Hawaiians. Em 1959, James A. Michener escreveu-lhe as «liner notes» para o álbum Hypnotique («Esta é musica para ser vista e, neste disco, há muitos sons novos que obrigarão o ouvinte a criar as suas próprias imagens verbais»), Sammy Davis, Xavier Cugat ou John Sturges alimentaram a lenda e, numa íntima relação com Les Baxter, encarregou-se de popularizar ao vivo as ideias que o outro concebia no laboratório do estúdio. Modernos discípulos como os Beach Boys, Devo, Yellow Magic Orchestra ou Combustible Edison prolongaram o mito. Mas não há como escutar «Quiet Village», «Bali Hai», «Ringo Oiwake», «Oro (God of Vengeance»), «Llama Serenade», «The Left Arm Of Buddha», «Mau Mau», «Tse Tse Fly» ou «Voodoo Love» para compreender como o mundo, muito antes da aldeia global, já tinha deixado de ser o que é.

* actualmente 36 (samplers e best ofs incluídos)

(1997)

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