18 June 2008

DOCES NADAS


Há um ano, esta era a música do passado. E de um passado consideravelmente distante. Hoje é, pelo menos, uma das músicas do futuro. Haverá alguma lição a retirar daí? Provavelmente só aquela que ensina que, daqui em diante, vigora a mais absoluta amoralidade estética. Por outras palavras, não há princípios firmes e eternos. Se o «easy listening» (em leitura contemporânea, «E-Z listening») era uma história longínqua de avós às voltas com a decoração de interiores e a melhor forma de não incomodar os ouvidos dos convidados durante a «cocktail-party», agora, acha-se reconvertido em «música ambiente» respeitada e aceitável, reivindicando-se de Mozart, Satie, Cage e Brian Eno. A verdade é que sempre foi assim. Pensava-se em Ray Coniff, Percy Faith e Martin Denny e regressavam a galope os fantasmas da «música de fundo» decorativa e descartável... Mas se os nomes fossem Eno, Chet Baker ou Debussy, o escudo de respeitabilidade cultural já era diferente. O problema (se existe um problema...) é que já ninguém pensa muito nisso. Nenhum é melhor do que os outros e, se se trata de aromatizar a atmosfera com sons, é apenas uma questão de gosto.


Yma Sumac - "Pachamama"

Mike Flowers, a recente vedeta E-Z - após a versão de «Wonderwall» dos infinitamente inferiores Oasis -, fala, com toda a razão, dos conceitos de «pop orchestra» e «expanded combo». Explica logo a seguir que se trata de um «não-género» com referência à canção popular, ao jazz, à música latina, à pop, ao rock, à folk, ao country e ao classicismo orquestral, misturando «os sons exóticos de Bacharach e Bjork, a perspectiva histórica e caleidoscópica do cravo eléctrico e a exuberância de Jimmy Webb» num cadinho psicoacústico que convida o público a saborear «as atmosferas criadas pelos Velvet Underground e Sérgio Mendes, apimentadas por Prince, com um toque de tijuana». Tem programa e tudo: «A nossa ética é essencialmente positiva, desafiamo-nos a esquecer as diferenças e a procurar um terreno comum. Depois, descontraiam-se e divirtam-se pois trata-se de uma atitude não competitiva em que o objectivo é o prazer e a aceitação mútua, um divertimento democrático e espectacular para toda a família». Como escreveu Christophe Conte, em «Les Inrockptibles», a propósito das versões de Mike Flowers para «Wonderwall», e «Light My Fire», «tudo bem pesado, qual dos dois grupos é mais 'kitsch', Mike Flowers Pops ou Oasis? Qual dos dois cantores roça mais de perto o ridículo, Mike Flowers ou Jim Morrison?». Aceitam-se todas as respostas, rejeitam-se os conflitos entre «Please Release Me», de Engelbert Humperdinck, e «All Tomorrow's Parties»/«Venus in Furs»/«White Light White Heat», dos Velvets, em nome do ecumenismo E-Z (não é a «Velvet Underground medley», como diz Mike Flowers, a «ambient section» dos seus concertos em que o ambiente é Nova Iorque?) e compreende-se inteiramente que os Tindersticks encomendem partituras a Juan Garcia Esquivel, o papa exótico da música de vida fácil.


Frank Pourcel - "Concorde"

Para conferir profundidade histórica ao empreendimento, existem também as reedições em CD de Dig It e The World of James Bond/Adventure, oriundos da época em que o «easy listening» dava novos mundos sonoros ao mundo. Acompanhando o desenvolvimento dos sistemas de alta-fidelidade, «Dynagroove», da RCA, «Dynacoustic», da Somerset, «Visual Sound Stereo», da Liberty, «Living Presence Series», da Mercury, «360 Degree Sound», da Columbia, ou «Full Dimensional Stereo», da Capitol, o «Phase Four Stereo», da London, distribuía vozes e timbres instrumentais pela esfera acústica e, com as orquestras de Frank Chacksfield, Larry Page, Ted Heath, Roland Shaw, Ivor Raymonde ou Ronnie Aldrich, convertia a subversiva pop emergente em amenas aguarelas sonoras capazes de estimular digestões difíceis e aplacar conflitos domésticos. Ontem como hoje, de «Tequilla» a «These Boots Are Made for Walking» ou às composições de John Barry para James Bond, a receita era eficaz e, no final da refeição, havia sempre lugar para os «40 exotic rhythms from the ruler of all things latin», isto é, Edmundo Ros, celebridade da rádio, «superstar» absoluta do início dos anos 60 nos clubes noturnos londrinos, favorito da realeza e das donas de casa. Rumbas, sambas, temperos exóticos, «pop à la carte» ou árias de ópera com molho de calypso faziam as delícias dos convivas.


Martin Denny - "Exotica"

Algo mais vanguardistas (entendam a palavra como quiserem) eram Les Baxter, Martin Denny, Chick Floyd, Yma Sumac ou os 80 Drums Around the World. Nenhum deles sabia mas, nos anos 50, estavam a inventar o conceito de «world music», observado sob a perspectiva «naive» americana. Chamavam-lhe «exotica», combinava sons da Polinésia, da China, do mundo árabe, de África, da Índia, do Hawai e do coaxar das rãs e gerou personagens únicas como Les Baxter, explorador pioneiro do «theremin» e único compositor em simultaneo para os filmes de Ingmar Bergman, Roger Corman e Ed Wood. Exportam-nos, hoje, ao lado de receitas para «cocktails», evocações de colonialismo turístico e aventuras na selva. Espécimes destes e muito mais é o que consta de Mondo Exotica e da série Ultra Lounge, da Capitol, que promete poesia pura em títulos como Bachelor Pad Royale, Space Capades, Wild, Cool & Swinging, Rhapsodesia, Cha Cha de Amor, Organs in Orbit ou Saxophobia...



(1996)

2 comments:

Táxi Pluvioso said...

Acho que musak depende de cada um. Musak para mim são os Impaled Nazarene. Se encontrasse o Brian Eno a pôr música nos aeroportos dava-lhe um par de estalos… ou agradecia-lhe por ter mostrado que os U2 são uma grande porcaria.

Continuando o comentário sobre a FHM e Maxmen: a virgindade é uma questão de fé ou um estado de espírito.

Sou do tempo em que as namoradas passavam de um para o outro virgens. Ou quase. Ou melhor, tecnicamente, não, mas moralmente, sim.

Um gajo ouvia cada história para justificar a ausência da membrana. Regra geral, implicava um acidente, onde não entrava o membro sexual masculino, uma queda de bicicleta, de uma árvore, uma abertura de perna mais violenta…

Anonymous said...

Os teus posts são fabulosos João! Lembro-me de em 96 andar aos pulos a ouvir o aníbal cabrita e o salé (e outros) na xfm e, claro, incensar aphex twin e mike flowers.