OS DOIS MUNDOS DA TRADIÇÃO
Mnemosyne
Mal se pronuncia a palavra “tradição”, desenha-se, instantaneamente, uma estreitíssima linha que, no entanto, separa, com clareza, dois universos: um, para o qual galopam muitos dos piores sinais de tribalismo, nacionalismo e, de um modo geral, tudo o que decorre do mais aterrador instinto de territorialidade, através do qual se legitima uma extensa agenda de barbaridades, selvajarias e atrocidades – das corridas de toiros, às limpezas étnicas e à mutilação genital feminina – que, a serem suprimidas (alegam os seus defensores), amputariam as comunidades dos seus praticantes de uma parcela insubstituível de preciosa “identidade”; e o outro que um dos casos relatados por Oliver Sacks em Musicophilia - Tales Of Music And The Brain ilustra exemplarmente: Clive Wearing, um músico e musicólogo inglês vítima de uma gravíssima encefalite que lhe induziu uma amnésia profunda, ficou reduzido a um intervalo de memória de cerca de trinta segundos e preso num interminável “agora” que apagou todo o sentido de continuidade da sua narrativa de vida. Essa, apenas regressava, fragmentariamente, quando se sentava ao piano e a interpretação de um prelúdio de Bach lhe devolvia uma semelhança de existência e lhe permitia inverter o sentido da condenação que, nos fugazes instantes de lucidez, reconhecia: “Sou completamente incapaz de pensar”.
O coral feminino Cramol cuida, dedicadamente, da saúde da nossa memória colectiva e fá-lo, sem interrupção, desde há quase trinta anos. A recuperação das polifonias, cantos de escatilhar, embalos, canções de trabalho, temas de religiosidade popular, esconjuros, encomendações e maldições pagãs a que, incondicionalmente, se entregam, não só impede a mumificação da música popular tradicional por entre o bolor das páginas dos cancioneiros mas – exactamente da mesma forma que os prelúdios de Bach actuavam sobre a memória residual de Clive Wearing – contribui também para que possamos continuar a pensar e a pensar-nos. Vozes de Nós, como o anterior Cramol (1996), não tem como objectivo “modernizar”, operar cruzamentos transculturais de idiomas ou inventar fogos-de-artifício vocais. Aqui, neste duplo-CD e nas várias oportunidades em que dividiu o palco com grupos de teatro, companhias de dança ou músicos como os Urban Sax, Gaiteiros de Lisboa, Amélia Muge, Danças Ocultas ou Camané, o Cramol propõe-nos só a possibilidade de uma reflexão não demasiadamente simples mas decisiva: “somos isto, recordemo-nos que vimos daqui, para onde desejamos ir?”. Precisamente o género de tesouro que Wearing, na sua tragédia individual, daria tudo para possuir.
Maria Café, das Tucanas – outro colectivo feminino, neste caso de vozes, percussões e episódicos acordeão e sopros – situa-se no polo oposto: o álbum de estreia deste estilhaço distante da galáxia Rui Júnior/Tocá Rufar/Wok sonha com uma “tradição” poliglota (para a qual inventaram, expressamente, o “tucanês”) onde os diversos veios locais se confundem e a única raiz comum se alimenta da batida rítmica. Ainda não terão iniciado uma autêntica expedição de verdadeiras descobertas nem cartografado territórios inconfundivelmente novos mas o programa e desenvolvimentos futuros deverão ser seguidos com atenção.
Entre ambos, a Ronda dos Quatro Caminhos, com Sulitânia, explora as hipóteses de uma amplificação de recursos no tratamento do reportório tradicional para o que recorre aos efectivos combinados das Adufeiras de Monsanto, do grupo alentejano Coral Guadiana de Mértola, do côro Eborae Musica, do quarteto de cordas Opus 4 e dos Cantares de Évora. O ensaio de estilização e (quase) elevação ao patamar de “música de concerto” da tradição popular é, sem dúvida, conseguido, mas é impossível não reparar como, num terreno onde já muito pouco cerimoniosamente lavraram os Chuchurumel, Gaiteiros, Sétima Legião e Amélia Muge, Sulitânia resulta excessivamente engravatado e conservador.
(2008)
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