26 February 2008

DEPARTAMENTO "PEQUENOS ÓDIOS DE ESTIMAÇÃO" (XV)

A ANGÚSTIA DO MÚSICO POP PERANTE A ETERNIDADE


Sting - Songs From The Labyrinth



Paul McCartney - Ecce Cor Meum

Não é uma questão de falta de respeitinho pelos superiores valores da música erudita nem de abate público de nenhuma vaca sagrada. Sting podia ter pegado nas peças do compositor isabelino John Dowland, tê-las salamizado em fatias muito finas, recitado os textos na companhia do seu rapper preferido, substituído o alaúde por didgeridus e chamado uma matilha uivante de praticantes de "thrash metal" para se ocupar dos coros. A equação não seria fácil de resolver mas aquilo que, em última análise, importa — resulta ou não resulta? — ficaria claramente definido. O que Sting nunca deveria ter feito era imaginar que a ele, sapateiro (apenas armado da própria voz e do alaúde de Edin Karamazov), lhe poderia ser autorizada a fantasia de tocar rabecão. Isto é, arriscar-se a combater nos mesmos termos de Alfred Deller, Emma Kirkby ou Andreas Scholl, atletas de alta competição no território-Dowland, em comparação com um pobre Gordon Sumner, amador dos distritais. A raiz do problema tem uma designação cientificamente aprovada: a angústia do músico pop perante a eternidade.


Nem sempre se manifesta de forma aguda mas, quando isso acontece, não é bonito vermos alguns dos que justamente admirámos como belíssimos animais pop fazerem a triste figura de candidatos ao reconhecimento "sério" da academia e (com imensa sorte) a uma nota de pé-de-página no Grove Dictionary Of Music. No número de Outubro do "BBC Music Magazine", Sting não descansa enquanto não revela que "Whenever I Say Your Name" (do álbum de 2003, Sacred Love) "é inteiramente baseado num prelúdio de Bach" e que "Russians" (de Dream Of The Blue Turtles, 1985) se inspirou na Suite do Tenente Kijé, de Prokofiev. A verdade é que, se algo lhe devemos, é do tempo dos Police, quando ele e Stewart Copeland descobriam Bob Marley e Desmond Dekker. Songs From The Labyrinth não só não o inscreverá na História da Música (atenção às maiúsculas!) como demonstra eloquentemente que o possuidor de uma voz com a agilidade e a elegância da cintura de Tony Soprano teria feito bem melhor se reservasse para exclusivo uso doméstico — sempre desenjoa do tantrismo... — a investida contra as requintadas composições de Dowland, durante quatrocentos anos pouco habituadas a tão maus tratos.


Outro que destila suores frios quando supõe que será para todo o sempre encarado como o autor de "Obladi Oblada" é Paul McCartney. Ter sido, na altura certa, o mais experimentalista dos Beatles não lhe basta (não só um mas vários "obladis" lhe pesam na consciência estética), daí que, desde há anos, ciclicamente, se sinta na obrigação de amofinar o universo com um novo e portentoso "opus" sinfónico (ou coral-sinfónico), cunhado no molde do neo-classicismo britânico mais bacoco e debruçado sobre os "grandes temas" e as "grandes inquietações" que, desde a Vénus de Willendorf, atormentam o sapiens sapiens. Ecce Cor Meum ("Vede o meu coração") ocupa penosos sessenta minutos com um desfile de lugares-comuns do "bê-a-bá" do aprendiz de compositor "erudito" não informado da existência do século XX e, muito pior do que isso, abala irremediavelmente a nossa confiança nas ilustríssimas instituições universitárias britânicas: a encomenda da obra, há oito anos, deveu-se a Anthony Smith, presidente do Magdalen College, de Oxford. Pela amostra, mais um clube do qual, mesmo que nos aceite como sócios, nunca desejaremos fazer parte. (2006)

4 comments:

gorgulho said...

"se algo lhe devemos"

Olha lá, eu cá sou um homem de contas certas e estou certo de não dever nada a esse senhor. Foi ódio à primeira audição. E o outro, quem é? Vê lá mazé se arranjas uns ódios com pinta, daqueles polémicos, que para odiar trastes destes, basta um surdo como eu.

João Lisboa said...

"Vê lá mazé se arranjas uns ódios com pinta, daqueles polémicos"

Ora procura lá bem...

gorgulho said...

Tava à rénar, não era para t'amofinares mas percebi logo que o laconismo trazia água no bico pelo que me obriguei, em compungida penitência, a seguir a label toda e, sendo deus o sacana que é, tá-se mesmo a ver que eu ia ser castigado pelo meu pecado de orgulho. Lá está, cais como as sete pragas do Egipto em cima duns mecos que eu até papo. O pior de tudo é que (raios!) até consegues fazer sentido.
Estou que não posso, como vai ser agora a minha vida?
Vou já apagar aquelas faixas todas no mp3... Já não conseguiria ouvi-las sem me vir à lembrança o som das impiedosas rajadas de metáforas assassinas. Sacana...

João Lisboa said...

lolada!