07 November 2007

TOM WAITS: AUTOBIOGRAFIA EM PEQUENAS PRESTAÇÕES, DITOS DE ESPÍRITO E SABEDORIA (XXI)



"As histórias por trás das canções são sempre menos interessantes que as próprias canções. Se eu lhe dissesse que 'Who Are You' era sobre a Jackie Kennedy, ficava admirado mas se, a seguir, lhe explicasse que estava a mentir e, afinal, era sobre a Nancy Reagan, já pensava que era uma canção diferente. A propósito, já que falamos nisto, todas as minhas canções são acerca da Nancy Reagan.

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"O piano que usei é um Fischer de Nova Iorque. É bom para apanhar caça grossa. Os pedais rangem que se fartam. Parece um barco a meter água. Os pianos têm destas coisas: se andam sempre de um lado para o outro, quando nos apoiamos neles, obtemos o mesmo som de quando nos encostamos a uma velha mesa de cozinha ou a uma cómoda antiga. São todos de madeira. Também temos um piano pronto para ir para a sucata que tem apenas a caixa de ressonância e as cordas e que usámos em 'What's He Building In There?'. Dá-se-lhe com um martelo e descobrimos outra faceta do piano. Mais preparado. Ou não preparado. Ou mal preparado.

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"O que eu gosto mais na música do Tricky é ele desfazer as coisas e depois montá-las outra vez do modo errado. A música dele é um bocado como se tivesse desmontado tudo e, pelo caminho, tivesse perdido algumas das peças principais. Mas acaba por funcionar. Embora coxeie um bocadinho. Tem uma qualidade própria. Gosto muito das texturas dele, parece ter um interesse muito especial pelos sons subliminares e pelo que fica desfocado. E pelo que está para além disso. E mais além ainda. Cria atmosferas.

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"Há canções que só resultam num contexto maior. Não têm de ser necessariamente o assunto principal. Há quatro ou cinco em que uma é mais importante e as outras servem de moldura. São ingredientes diferentes. Coisas que estão por ali, na sala. Algumas funcionam muito bem como a-canção-antes-desta ou depois-daquela mas não como a-que-fica-no-meio. Se fizermos tudo bem, descobre-se o equilíbrio perfeito. Uma cabeça, dois braços, duas pernas e uma cauda. Ou, às vezes, duas cabeças. Os álbuns bons são mesmo esses, os que têm duas cabeças.

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"Do que eu gosto é de coleccionar factos estranhos e pouco conhecidos. Sabia, por exemplo, que, se deitar uma gota de alcool em cima de um escorpião, ele enlouquece e pica-se até morrer? E sabia que as moscas só vivem duas semanas? Eis uma coisa a ter em conta quando matamos moscas! Serão velhas? Terão acabado de nascer? Isto deu-me que pensar. Por isso, se só vão andar por cá duas semanas, agora deixo-as em paz e que morram de morte natural. A formiga-raínha, por outro lado, vive até aos cinquenta anos. Mas há mais: é ilegal caçar camelos no Arizona; por lei, todos os cidadãos do Kentucky devem tomar banho uma vez por ano e as prisões estão cheias de gente que procura fugir a isso; uma barata pode viver várias semanas com a cabeça cortada; as formigas espreguiçam-se quando acordam (já foram vistas a fazê-lo ao microscópio!) e também bocejam. E, depois do trabalho, vão a uns barzinhos pequeninos onde bebem um néctar que as põe um bocadinho tontas. A baleia azul pesa o equivalente a trinta elefantes e tem o comprimento de três autocarros Greyhound. Também é útil saber que a girafa consegue passar mais tempo sem beber água do que o camelo, que o pescoço dela mede dois metros e meio (embora tenha as mesmas sete vértebras que o do rato) e que a língua chega aos sessenta centímetros. É capaz de abrir e fechar as narinas à vontade e corre mais depressa que um cavalo sem produzir o menor som. Só para acabar (não o quero maçar com mais histórias destas), os mosquitos são mais atraidos pelo azul do que por qualquer outra cor. O que quer dizer que, nos trópicos, convém usar camisas vermelhas.

(...)

1999

(2007)

3 comments:

ND said...

Agora diz-me: é possível ouvi-lo e manter um ar decente do início ao fim?

Eu disse decente as in inalterável.(já estava a ouvir o que daí vinha:decente??? decente?!?!?!?)

João Lisboa said...

Da vez que me tocou, às tantas, disse-me para lhe fazer a pergunta seguinte, pediu-me delicadamente para ir lá abaixo saber o que queria a mulher dele (que gesticulava, incompreensivelmente, na rua) e continuou, impassível, de pés em cima das costas da cadeira da mesa ao lado, a responder para o gravador. Quando voltei ao café, ainda ele falava, falava, para o gravador.

João Lisboa said...

Há, aí em cima, um "gravador" a mais, mas que se lixe.