06 November 2007

EM LOUVOR DO VAMPIRISMO POP



Quando, a 1 de Agosto de 1981, com "Video Killed The Radio Star", dos Buggles, a MTV iniciou a programação de videoclips musicais 24 horas sobre 24, desencadeou, ao mesmo tempo, uma discussão acerca dos efeitos que isso iria exercer sobre a indústria e a cultura pop. O menor dos quais não seria o de condicionar radicalmente a capacidade de cada espectador criar o seu próprio "filme mental", pessoal e intransmissível, em torno de uma canção: se, dali em diante, todas as músicas, viriam inevitavelmente acompanhadas de uma narrativa visual pré-fabricada e pronta a consumir, como poderia cada indivíduo libertar-se desse constrangimento e regressar à inocência da sua máquina de sonhos privada?



Na verdade, a MTV apenas acrescentara a dimensão industrial e os valores de produção dos mass media de comunicação a um conceito que, há muito, existia. Pelo menos desde que, em Alexandre Nevski (1938), Sergei Eisenstein coreografara as épicas batalhas sobre o gelo ao som da música de Prokofiev, muitos outros antecedentes da estética dos videoclips se haviam desenvolvido: no domínio da animação, as experiências de Oskar Fischinger (que trabalharia com Walt Disney em Fantasia) e Max Fleischer, e as Silly Symphonies, Looney Tunes e Merrie Melodies (da Disney e Warner); os "film clips" com músicos como Duke Ellington, Billie Holiday, Louis Jordan, Bessie Smith, Bing Crosby ou Cab Calloway; os "soundies", realizados nos anos 40, para a Panoram Visual Jukebox e, posteriormente, para a francesa Scopitone;



todas as sequências de canções/coreografias dos "musicais" — em particular, as da autoria de Busby Berkeley, perfeitamente autónomas no contexto da narrativa, puras abstracções geométricas de imagem e som; os filmes de Elvis Presley e dos Beatles (com Richard Lester); o "clip" de Bob Dylan para "Subterranean Homesick Blues" filmado por D. A. Pennebaker e os (de novo) dos Beatles com "Rain", "Paperback Writer", "Strawbery Fields Forever" e "Penny Lane", assim como o especial de televisão Magical Mystery Tour (contemporâneo do equiparável "Rock'n'Roll Circus", dos Rolling Stones) ou a animação "Yellow Submarine"; e os filmes promocionais para programas como "Top Of The Pops" (Reino Unido), "Countdown" (Austrália), "Saturday Night Live" (EUA) de músicos e bandas como David Bowie, ABBA, Queen, Devo, Residents ou do ex-Monkee, Mike Nesmith, que venderia à Warner/American Express o conceito-MTV.



O formato videoclip estava, pois, praticamente estabelecido — a música enquanto motor e elemento estruturante de uma curta sequência de imagens aberta a todas as possibilidades de expressão e criação — e, no modelo "performance video" (os músicos interpretam a canção em palco, no estúdio ou em cenários diversos) ou "concept video" (as imagens desenvolvem uma ideia, tema ou metáfora visual que ilustra ou comenta o sentido da música), abriam-se, em simultâneo, as portas para novas estratégias de marketing e para um novo sub-género da linguagem audiovisual. Seria, porém, apenas em Dezembro de 1992 — quando a MTV começou a referir o nome dos realizadores dos "clips" ao lado dos das bandas e canções —, que aquilo que, desde o início, fora razoavelmente evidente (Julien Temple, Martin Scorcese, John Landis ou Jonathan Demme já tinham conferido as cartas de nobreza ao género), surgiu, explicitamente, sem margem para dúvidas: o videoclip era obra de "autor".



Já, em 1985, o Museum of Modern Art de Nova Iorque o havia reconhecido através da organização da exposição/exibição Music Video: The Industry And Its Fringes (com "clips" de Laurie Anderson, Cars, Thomas Dolby, Captain Beefheart, Talking Heads e Beatles). Na década e meia seguinte (especialmente após o aparecimento do DVD), multiplicar-se-iam as edições de colecções de videoclips de considerável número de músicos. No entanto, organizados por realizador, só em 2003 surgiriam os primeiros DVD da Directors Label, da Palm Pictures, dedicados a Spike Jonze, Michel Gondry e Chris Cunningham a que se seguem, agora, quatro novos volumes com a videografia de Jonathan Glazer, Anton Corbijn, Mark Romanek e Stéphane Sednaoui.



Ainda que continue a ser habitual desvalorizar a relevância estética dos "clips" associando-os a um mero dispositivo publicitário (e é verdade que não apenas uma importante percentagem deles tende a confirmar o preconceito como também muitos autores são oriundos da publicidade ou para ela, mais tarde ou mais cedo, se encaminham), na obra e nas referências — abertamente reinvindicadas — destes quatro realizadores é fácil descobrir as sombras de Kubrick, Bergman, Cronenberg, Godard, Tati, Fritz Lang, Cocteau, Lynch, Welles, Polanski ou Brakhage. O britânico Jonathan Glazer é, deste grupo de quatro, aquele que, embora com uma obra mais curta (apenas nove videoclips, oito dos quais incluídos no DVD), possui uma superior e indiscutível "marca de autor":



os filmes para "Rabbit In Your Headlights", dos UNKLE (uma psicótica e desmedidamente violenta alegoria nietzscheana), "Into My Arms", de Nick Cave (o duro expressionismo dos grandes planos a preto e branco amplificando e forçando até ao limite a insuspeitada angústia da canção), "Street Spirit", dos Radiohead (outra vez o preto e branco em regime de imponderabilidade) e "Karmacoma", dos Massive Attack (The Shining, Videodrome, Twin Peaks e algum Polanski em poucos minutos) bastariam para varrer as últimas dúvidas acerca do videoclip enquanto objecto de arte. Mas o mais interessante é que tanto os restantes "clips" ("Virtual Insanity"/Jamiroquai, "A Song For The Lovers"/Richard Ashcroft, "The Universal"/Blur — de novo Kubrick e A Clockwork Orange —, "Karma Police"/Radiohead — Stephen King+Lost Highway) são igualmente magníficos, como os onze "clips" de publicidade aqui também apresentados (todos brilhantes) se encarregam de reforçar a ideia de Glazer enquanto mestre do requinte audiovisual das pequenas formas.



Mark Romanek, pelo seu lado, é o ecletismo em (im)puríssimo estado: minimal e quase amador, com vénia a Nan Goldin, em "Criminal", de Fiona Apple, excessivo e ultra-barroco com "Are You Gonna Go My Way", de Lenny Kravitz, "Cochise", dos Audioslave, ou no "freak show" ritualista e esotérico-S&M dos Nine Inch Nails em "Closer" (inspirado em Joel-Peter Witkin), devastadoramente cruel (e comovente) no jogo de contrastes entre as imagens de arquivo do jovem Johnny Cash e o seu rosto destroçadamente envelhecido dos últimos anos ("Hurt"), empenhado em demonstrar como um videoclip, à custa da mais insana megalomania, pode ser mil vezes melhor que a canção que lhe serve de pretexto ("Scream", de Michael e Janet Jackson, o mais caro "clip" de sempre — 7 milhões de dólares) ou capaz da mais refinada estetização de dois tempos e lugares da cultura negra ("99 Problems", de Jay-Z, e "Got 'til It's Gone", de Janet Jackson).



O francês Sednaoui, oriundo da fotografia de moda, à excepção dos vídeos para Björk ("Big Time Sensuality" e "Possibly Maybe"), do erotismo "exótico" de "Disco Science", de Mirwais, da vertigem claustrofóbica e compulsiva de "Hell Is Around The Corner" e "Pumpkin", de Tricky, e, principalmente, do corpo em dissolução de Natasa Vojnovic rumo à integral desmaterialização ("Acqua Natasa") e da micro-narrativa gay em exercício tenso de "jump-cuts" inspirada em "Walk On The Wild Side", de Lou Reed, é, notoriamente, aquele que mais facilmente se deixa seduzir (e que mais intensamente seduz) por uma certa frivolidade "arty" e uma exibição de virtuosismo e maneirismos que parece ter como único objectivo a vitória na categoria "most stylish".



No meio dos outros três, Anton Corbijn (também com extenso currículo na fotografia de inúmeros ícones pop) faz figura de pioneiro veterano: das texturas granuladas a preto e branco de "Dr. Mabuse" (Propaganda), "Red Guitar" (David Sylvian) ou "Atmosphere" (Joy Division) ao divertimento surreal de "Seven Seas" (Echo & The Bunnymen), à provocação sanguínea de "Liar" (Henry Rollins) ou ao delírio cromático de "Heart Shaped Box", (dos Nirvana, filmado a cores, passado a preto e branco e colorido à mão, "frame" a "frame"), desfila uma história visual de bolso dos últimos vinte e cinco anos da pop com lugar de partida nos Palais Schaumburg, passagem por U2, Captain Beefheart, Depeche Mode, Nick Cave, Beck, Metallica e Joseph Arthur e ponto de chegada com Mercury Rev, Travis ou Liars.



Todos os DVD incluem larga variedade de extras (entrevistas, versões alternativas, comentadas e/ou não censuradas, "director's cuts", entrevistas, documentários, "making ofs" e excertos de filmes) e, no seu conjunto, celebram vibrantemente a voracidade da cultura pop como vampiro insaciável de todas as imagens e sons.

The Work Of Director Jonathan Glazer
The Work Of Director Mark Romanek
The Work Of Director Stéphane Sednaoui
The Work Of Director Anton Corbijn

(2006)

2 comments:

Nuno Guronsan said...

Os meus parabéns pelo escorreito texto, João. Tenho de reconhecer o meu "fraquinho" pelo Jonathan Glazer. "Into My Arms" e "Street Spirit" são líndissimos.

Abraço.

João Lisboa said...

O "Into My Arms" está, "lá para trás", num post sobre o Nick Cave. É um clip fabuloso, é.