17 October 2007

OBJECTOS MÁGICOS



Punch-Drunk Love (real. Paul Thomas Anderson)

* Em Punch-Drunk Love, há um harmonium que é como o monolito de 2001-Odisseia No Espaço ou a "caixa de Pandora" de Lulu On The Bridge: um objecto mágico (notar que, no filme, ninguém nunca sabe exactamente como designá-lo) vindo de lado nenhum que, instantaneamente, instala uma nova ordem no modo de os acontecimentos se processarem, determina, orienta e progressivamente estrutura a narrativa através da própria forma como o seu segredo vai (ou não vai) sendo desvendado; ao mesmo tempo um "trickster" gerador de acasos e coincidências e de uma lógica (pré-determinada?) de invenção da melodia e da harmonia "clássicas" no interior da dissonância e da desordem.



* Um harmonium é, evidentemente, um instrumento musical pelo que — se, simplistamente, quiséssemos ficar só por aí — não seria de todo um disparate afirmar-se que Punch-Drunk Love é um filme que estrutura o ritmo interno de acordo com o desenvolvimento da sua banda sonora, que esta lhe oferece a razão de ser da própria dinâmica narrativa e vive segundo as curvas e inflexões que ela vai, de momento a momento, exigindo. Adensa, às vezes até à claustrofobia, o espaço psicológico, aligeira as tensões até à dimensão da "féerie", sublinha, comenta, acrescenta sentidos e multiplica ângulos de visão num filme que se poderia encarar como um musical de quase uma só canção mas em que tudo é inventado a partir de um sistema circulatório musical/sonoro que, do início até ao fim, o irriga.



* No anterior filme de Paul Thomas Anderson, Magnolia, havia, em função equivalente (uma espécie de côro que ia sendo distribuido pelas "vozes" das diversas personagens), as canções de Aimee Mann e, em segundo plano, já também a música de Jon Brion, figura voluntariamente discreta ao lado dela como de Fiona Apple ou Rufus Wainwright. Aqui, a música não só oferece a respiração vital ao organismo fílmico: a partir da própria banda sonora como que se poderia realizar uma outra leitura paralela do filme que se desenvolve em torno de um eixo constituído pela muito chapliniana valsa-tema, a desdobra em múltiplas facetas e tonalidades, acrescenta-lhe percussões labirínticas acústicas e electrónicas, planta-lhe inesperadamente ao meio o delicioso kitsch ultra-romântico de "He Needs Me" cantado por Shelley Duvall (extraido do Popeye, de Robert Altman), o rock'n'roll presleyano de Conway Twitty (apenas ouvido quase subliminarmente, em fundo) e uma ou duas pincelados de exotismo havaiano como motor de uma história na qual o aparentemente ingénuo "boy meets girl" é apenas o pretexto para um fabuloso exercício formal.



* Paralelamente ao modo como, da desestruturação e disfunção psicológica, social e afectiva de Barry — notar como, em dois momentos, isso se reflecte também, física e metaforicamente, nos labirintos que ele se vê obrigado a percorrer —, a pouco e pouco, vai emergindo um padrão viável de lidar com os acontecimentos, as duas ou três notas que, desajeitadamente, ele vai conseguindo arrancar ao harmonium (e que irão ser a matriz do tema orquestral principal do filme que, ao longo deste, irá sendo declinado em diferentes variações) acabarão por descobrir a lógica maior e completa de um motivo musical plenamente desenvolvido. Nesse processo de literal recomposição musical e narrativa, da desordenada atmosfera sonora que habita a cabeça de Barry (o sufocante, esgotante, cansativo acumular de percussões electro-acústicas), por efeito do encontro simultâneo com o harmonium e com Lena, acaba por libertar-se um desenho musical muito tradicionalmente harmónico, tão tradicional, enfim, como o "happy end" do desfecho. Ou, pelo menos, tão "happy" quanto o "here we go" final pode deixar antever. (2002)

2 comments:

saturnine said...

isto é um sinal, de certeza. ando literalmente háanos a tentar ver esse filme.

João Lisboa said...

Follow thy path, little psot.