06 October 2007

DA TERRA E DO MAR


PJ Harvey - Stories From The City, Stories From The Sea

De regresso, Polly Jean Harvey conta as suas histórias da cidade e do mar e, ao fazê-lo, transforma-se na Patti Smith que nunca foi. Ela diz que não é verdade mas é bem provável que não tenha razão. Não só porque isso lhe fica extraordinariamente bem, como também porque não há nada de errado em reescrever de modo diferente as etapas de um percurso îdêntico que pode ter necessitado de várias protagonistas para se tornar integralmente legível. Mesmo que ela ainda não o saiba.

O título deste seu álbum — Stories From The City, Stories From The Sea — começa por ser um pouco desconcertante na medida em que, normalmente, a oposição que faríamos seria entre "city" e "country" e não "city" e "sea"...
Não se tratou, para mim, de estabelecer esse contraste. Eu vivo no sudoeste da Inglaterra, literalmente na praia. Da minha janela apenas vejo o mar que se tornou o meu ambiente natural. Mesmo, quando vivia em Nova Iorque, que também se debruça sobre o Atlântico e convive de perto com rios, isso também acontecia. De modo que esse título pareceu-me bastante adequado.



E esse aspecto da influência do cenário é realmente importante para a escrita das suas canções?
Na verdade, nem por isso... Pode-se especular muito acerca desse assunto mas, de facto, se umas foram escritas na cidade e outras à beira do mar, têm muito pouco a ver com isso. As canções provêm de mim e relacionam-se apenas com as minhas reacções ao que vejo, oiço e sinto todos os dias.

Neste disco parece ter optado por regressar à sua sonoridade do início, bastante mais rude, muito mais rock do que nos últimos álbuns, em especial Is This Desire?. Por que motivo?
Não procurei voltar atrás, pelo contrário, pretendi caminhar em frente em direcção a algo de novo. Nos dois últimos álbuns — Is This Desire? e To Bring You My Love — tentei explorar áreas musicais diferentes, concentrei-me muito mais nas atmosferas e nas sonoridades do que na escrita de canções muito simples. Desta vez, tentei escrever outra vez canções muito directas e procurar uma energia diferente. Se os anteriores foram álbuns muito lentos, escuros e densos, agora quis afastar-me disso e reencontrar uma sensação de entusiasmo e de energia na escrita das minhas canções.

Quando apareceu na cena musical, houve muita gente que associou a sua música à de Patti Smith o que sempre me pareceu um pouco despropositado. Mas, desta vez, ao escutar canções como "Good Fortune" e títulos como "Horses In My Dreams", já não estou assim tão seguro. Concorda comigo?
Parece-me bem que não... Essa imagem perseguiu-me sempre e sempre tive a ideia que não era mais do que uma atitude preguiçosa dos jornalistas que tem apenas origem no facto de eu cantar e compôr canções muito intensas e de me pronunciar acerca das minhas convicções tal como a Patti Smith faz. Musicalmente, somos completamente diferentes e os textos que escrevemos também.



Nem sequer em canções tão evidente e quase foneticamente "pattismithianas" como "Good Fortune" e "This Is Love"?
De facto, já houve mais pessoas que fizeram essa comparação. Mas só se for por causa do texto falar de Nova Iorque que é um tema que a Patti Smith também abordou com frequência.

Não tanto neste último disco mas mais no anterior, criou uma série de personagens femininas através das quais falava. Eram inteiramente personagens de ficção ou apenas máscaras por meio das quais se projectava a si mesma?
Nesse disco procurei explorar a técnica de escrita na terceira pessoa o que era algo que não tinha tentado muito antes. Tinha andado a ouvir muito o Bob Dylan que, com grande frequência, é capaz de escrever segundo o ponto de vista de outra pessoa. Foi uma atitude verdadeiramente premeditada. Mas também, pessoalmente, havia coisas que se passavam comigo que me faziam desejar projectar a minha vida nas situações de outras pessoas. Dito isto, no novo álbum regressei à escrita na primeira pessoa, em cima dos momentos, a quente, e não através dos olhos de outros.

De qualquer modo, tanto através das técnicas de escrita, como da forma como se apresentava em palco, sempre existiu em si um elemento muito forte de teatralidade...
Sim, interessa-me bastante mas apenas quando é apropriado para a música, num determinado momento. Quando termino um álbum e me preparo para o apresentar em palco, procuro as imagens que me parecem adequadas para aquela música. Mas é algo que vem sempre depois da música e que só pretende realçá-la e incutir-lhe uma dinâmica mais forte.

Foi no programa de televisão September Songs, sobre as canções de Kurt Weill, quando a vi interpretar a "Ballad Of The Soldier's Wife", que, definitivamente reparei como, para além de cantora, compositora e performer, havia uma actriz dentro de si. A seguir a isso, já não me espantou nada saber que iria trabalhar realmente como actriz no filme The Book Of Life, de Hal Hartley...
É verdade, é, para mim, uma coisa muito natural. Obviamente, quando, no palco, interpreto as minhas canções, tiro partido disso. Por isso, participar no filme do Hal Hartley, foi-me relativamente fácil. Aprendi uma série de coisas que também poderei vir a utilizar na escrita de canções e foi uma experiência que, francamente, me apetece prosseguir. É evidente que desconfio muito daquela armadilha segundo a qual qualquer cantor pode facilmente transformar-se em actor. Teria, evidentemente, de trabalhar e de me concentrar muito nisso para o realizar com êxito. É um ofício que exige dedicação e estudo e só dessa forma me dedicaria a ele. Apesar de me parecer fácil e natural, investiguei muito a natureza da personagem o que é completamente diferente de quando canto e me estou a representar a mim própria.



Nesse filme de Hal Hartley representou a figura de Maria Madalena. E o mais curioso é que, ontem, estava a ler um livro sobre o gnosticismo cristão no qual se referia a hipótese de Maria Madalena ter sido uma prostituta-sacerdotiza da Grande Deusa adorada em Magdala e, duas ou três páginas a seguir, se falava das "Sheela-na-Gigs" (o tema de uma das suas primeiras canções), essas gárgulas femininas que, nalgumas igrejas cristãs do mundo celta, exibem obscenamente o sexo, como deusas pagãs da fertilidade e do renascimento simbólico...
A sério?! É fascinante!... Não fazia a menor ideia. E o mais interessante é que, antes de a representar no filme, li tudo o que pude encontrar acerca da personagem e não descobri nada acerca disso. É espantoso, estou sempre a aprender.

Nunca ninguém a conseguiu situar exactamente como feminista, pós-feminista, anti-feminista ou apenas feminina. Como mulher, parece-lhe importante ter uma opinião acerca disso?
Sempre me perguntaram isso e disse sempre que foi um assunto que nunca estudei, investiguei e que nunca senti que, na minha carreira, tivesse sido uma desvantagem. Foi uma questão por que nunca tive de me interessar. Quando algo relacionado com isso aconteceu, fiz o que tinha a fazer, lidei com o assunto, e tudo se resolveu. Comigo, isso nunca foi um problema. Nunca tive nada a ver com as "riot grrrls" e a música delas também nunca me pareceu muito boa (risos).

Há tempos, li algures que, se David Bowie tivesse aparecido nos anos 90, teria seguido uma trajectória semelhante à sua. Está de acordo?
É uma opinião muito simpática. Mesmo que não aprecie tudo o que ele fez, admiro o seu desejo de mudar em cada álbum, de procurar novos territórios, e, de em cada momento, mudar de pele. (2000)

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