07 September 2007

A CANONIZAÇÃO DE SÃO COBAIN
(a propósito disto referido aqui)



Tom Waits disse uma vez que "o que o show-business tem de mais lindo é que é a única actividade em que se pode ter uma carreira depois de morrer". Como é costume, estava a ser sarcástico mas nem por isso andava longe da verdade. Porque, aqui, talvez mais do que em qualquer outra área de acção, o reflexo católico da canonização tem consequências imediatas e directas na dimensão do mito e na conta bancária dos eventuais herdeiros.
De John Lennon, Jimi Hendrix, Janis Joplin e Jim Morrison a Ian Curtis, Jeff Buckley ou Kurt Cobain, os melhores "santos pop" são, invariavelmente, os ídolos mortos e é mesmo possível estabelecer uma espécie de "ranking" através do qual se hierarquiza (e não é a "hierarquia", etimologicamente, o "governo do sagrado"?) o estatuto, o grau de culto e o chique das diversas possibilidades de "morte pop".

Foi o crítico norte-americano, Greil Marcus, o primeiro a formular os critérios e as grelhas de avaliação no artigo "Rock Death in the 1970s: A Sweepstakes", publicado no "Village Voice", em 1979: atribuindo um máximo de dez pontos a cada um de três parâmetros ("contribuição passada", "influência futura" e "forma de morte rock"), ordenou os 116 passamentos de notáveis até essa data, saindo vencedores "ex-aequo", com 25 pontos, Jimi Hendrix e o cantor dos Lynyrd Skynyrd, Ronnie Van Zant.



Se os termos de apreciação no que respeita à relevância artística passada e futura podem ser discutíveis, não deverá haver dúvidas que um óbito por "overdose" de heroína é irrelevante (não vale mais do que "1") e que uma execução às mãos da Máfia — caso de James Sheppard, leader dos Heartbeats, desaparecido em 1970 — merece, indiscutivelmente, um "10", acossado de perto pelo "9" de Angus McLise, primeiro baterista dos Velvet Underground, vítima de malnutrição. "Honi soit qui mal y pense" mas, diria eu, que Bono, dos U2, alvejado pelas costas, durante um cordão humano contra a futura guerra EUA vs Iraque, na baixa de Bagdad, seria candidato instantâneo a um total de "30".
E Kurt Cobain? Greil Marcus ainda não se pronunciou mas, por "contribuição passada", eu dava-lhe um "6" (durante quatro ou cinco anos, o "grunge" deu ordens na cultura pop), por influência futura, levava um "5" cauteloso (não acredito muito na enésima recuperação do rock reaccionariamente "honesto" e "punkianamente" romântico, mas quem pode prever os ciclos de revivalismo cada vez mais curtos que o marketing discográfico promove?) e, quanto a "forma de morte rock" (por analogia com Bobby Bloom, célebre pelo "hit", "Montego Bay", igualmente suicida com tiro de carabina), aceitando o critério de Marcus, outro "6". O que, com um razoabilíssimo "17", o situa na segunda metade do "top ten", no mesmo escalão marcusiano dos "sétimos" de Jim Morrison e Keith Moon (dos Who), um ponto atrás de Janis Joplin e Gene Vincent, e outro à frente de Phil Ochs, o que me parece francamente injusto para este. Mas regras são regras e não há volta a dar-lhes.



Daí que seja plenamente justificada, à luz da sagrada lei do lucro, a publicação simultânea dos Diários de Kurt Cobain e do Best Of dos Nirvana. A canonização de um santo merece tudo e, oito anos após o seu suicídio e à beira do Natal (seja o Natal cristão, o das diversas indústrias do consumo, ou o felicíssimo casamento dos dois), a oportunidade não poderia ser mais apropriada. O próprio Cobain não tem a culpa toda — não terá, porventura, existido, alguém como ele, pobre adolescente retardado, emocionalmente disfuncional e narcoléptico, tão pouco apto a lidar com o sucesso — mas o mesmo, se calhar, não se deverá dizer acerca das batalhas de direitos e sucessão travadas entre a viuva-Cobain, Courtney Love, e os ex-Nirvana, Krist Novoselic e David Grohl. O negócio de publicação dos Diários foi fechado, por fim, entre a Riverhead Books e Love pela módica quantia de 4 milhões de dólares, ficando assim assegurado que, muito provavelmente, ficaremos a saber sobre Kurt Cobain... tudo aquilo que já sabíamos. Na verdade, do que até agora veio a público, para além da reprodução de manuscritos, esboços de desenhos, textos de canções e outros farrapos de memorabilia e informação que o próprio Cobain desejaria que tivessem permanecido pessoais e privados, pouco haverá de muito diferente do que já se conhecia através da sua biografia, Heavier Than Heaven (assinada por Charles R. Cross), ou do seu "testamento" informal (editado em Portugal pela Assírio & Alvim sob o título Odeio-me e Quero Morrer): evocações da infância passada no pesadelo provinciano de Aberdeen, memórias dos primeiros tempos dos Nirvana, a dependência da heroína estimulada (ou agravada) pelos dolorosos padecimentos gástricos, a relação de paixão/conflito com Courtney, a insegurança perante o êxito e a auto-consciência da própria imagem projectada.

E é curioso que, numa carta de 1991, Kurt escrevesse "a banda possui agora uma imagem anti-materialista, anti-consumista e não gananciosa que estamos a planear incorporar em todos os nossos vídeos" quando, ele mesmo, na nota biográfica do grupo, escrita para a imprensa por ocasião da publicação do álbum de estreia, Bleach, muito vernaculamente, declarava "os Nirvana estão convencidos que a cena underground está cada vez mais estagnada e cada vez mais pronta a vender-se à congregação dos porcos capitalistas das 'majors' discográficas. Mas os Nirvana sentem o dever moral de combater este cancro?... Nem por sombras! Nós queremos ganhar dinheiro e explorar a velhada, na esperança de também nós termos a oportunidade de nos ganzarmos e foder, ganzarmos e foder, ganzarmos e foder!" (in Odeio-me e Quero Morrer). Foi coerente e, quando atingiu o objectivo, não o suportou. É por isso que, agora, "a congregação dos porcos capitalistas e velhadas" da "major" Geffen/Universal (pela qual, ele, desde Nevermind, trocou a "independente" SubPop), lhe paga na unidade monetária prevista e — coincidindo com os Diários e integrando o também ferozmente negociado e claramente esquecível inédito, "You Know You're Right" — lança um Best Of da música do grupo que, Cobain, ele mesmo, não tinha o menor pejo de caracterizar como "the last wave of rock music" e "a derradeira reciclagem", explicando isso em termos bastante elucidativos: "Substancialmente, o rock é uma questão matemática, de cálculo numérico: no braço de uma guitarra, há seis cordas e doze notas. O rock pode obrigar-se a experimentar todas as combinações possíveis mas é inevitável que, esgotadas aquelas, tudo se comece a repetir... O ponto-limite da experimentação foi atingido há mais de uma década e o futuro do rock não poderá oferecer senão infinitas repetições de coisas já feitas. Daqui a vinte anos, haverá uns novos Black Crowes que farão uma versão dos Black Crowes de ontem, que faziam uma versão dos Faces...".



De facto, na modalidade "eu vi o futuro do rock'n'roll... e ele não existe" (o que ele repetiria exaustivamente, chegando a proclamar "o rock'n'roll não tem futuro e, já hoje, a malta se está nas tintas para ele, na melhor das hipóteses, consideram-no uma boa banda sonora para as suas vidas social e sexual. Acho que as gerações futuras darão outros passos nessa estrada, aproveitando-lhe somente os sons, as notas, para as utlizar dentro das suas máquinas de realidade virtual. Só assim poderão experimentar as emoções que hoje se vivem indo a um concerto de rock"), Kurt Cobain, o autoproclamado "falhado que se xuta nos bastidores antes de entrar em palco", foi profeta. Tal como o foi quando confessou "Sempre afirmei que não gostava de armas mas, com o tempo, descobri que, na realidade, gosto, transmitem-me segurança. Sobretudo, descobri que gosto de disparar. Em geral, odeio todos os desportos mas o tiro ao alvo é muito diferente, não consigo considerá-lo um desporto como os outros. E, depois, o facto de possuir armas faz-me sentir melhor: se um dia decidisse acabar comigo, não precisaria de me atirar da merda de um arranha-céus". Ou, talvez, mais profeta ainda quando, interrogado sobre o título que desejaria dar à sua autobiografia, respondeu: "I Wasn't Thinking". (2002)

9 comments:

ND said...

foi um sorriso - aqui e ali com picos de insolência audível- do princípio ao fim da leitura, aproveitando, e muito bem, um momento de mandriice (aproveito para dizer que só recentemente descobri que esta palavra tem dois is, o que a torna infinitamente mais bela e ajustada ao estado que ivoca)

ND said...

invoca (tb não se justifica que tenha que encolher outras, a linha é larga)

Anonymous said...

João, isso foi tudo vontade de escrever disparates, perdeste a capacidade de ver a ironia onde ela está ou apeteceu-te apenas ser cínico?

João Lisboa said...

Não, não, nada disso, gravíssimo engano: este é um excelente texto, sério, documentado e rigoroso. E ninguém está em melhor posição para o afirmar do que eu próprio que o escrevi.

Anonymous said...

Catano, estava à espera de te irritar. Safaste-te muito bem. Cheers (vou dormir que já é tarde, xiça penico).

João Lisboa said...

"Catano, estava à espera de te irritar"

Ora deixa ver se me lembro... a última vez que isso aconteceu, marchavam as tropas francesas sobre a Península Ibérica. Um alferes do Junot pôs-se a citar o Deleuze e, pá, passei-me.

Anonymous said...

Eu hoje estou um bocado irritadiço. Tive uma insónia e a empregada não apareceu. Tem o miúdo doente. Se o puto morre fico sem roupa lavada uma semana. Diabos.

João Lisboa said...

Nem penses que te empresto a minha.

Anonymous said...

Artigo absolutamente perfeito.