(a propósito disto referido aqui)

Tom Waits disse uma vez que "o que o show-business tem de mais lindo é que é a única actividade em que se pode ter uma carreira depois de morrer". Como é costume, estava a ser sarcástico mas nem por isso andava longe da verdade. Porque, aqui, talvez mais do que em qualquer outra área de acção, o reflexo católico da canonização tem consequências imediatas e directas na dimensão do mito e na conta bancária dos eventuais herdeiros.
De John Lennon, Jimi Hendrix, Janis Joplin e Jim Morrison a Ian Curtis, Jeff Buckley ou Kurt Cobain, os melhores "santos pop" são, invariavelmente, os ídolos mortos e é mesmo possível estabelecer uma espécie de "ranking" através do qual se hierarquiza (e não é a "hierarquia", etimologicamente, o "governo do sagrado"?) o estatuto, o grau de culto e o chique das diversas possibilidades de "morte pop".
Foi o crítico norte-americano, Greil Marcus, o primeiro a formular os critérios e as grelhas de avaliação no artigo "Rock Death in the 1970s: A Sweepstakes", publicado no "Village Voice", em 1979: atribuindo um máximo de dez pontos a cada um de três parâmetros ("contribuição passada", "influência futura" e "forma de morte rock"), ordenou os 116 passamentos de notáveis até essa data, saindo vencedores "ex-aequo", com 25 pontos, Jimi Hendrix e o cantor dos Lynyrd Skynyrd, Ronnie Van Zant.

Se os termos de apreciação no que respeita à relevância artística passada e futura podem ser discutíveis, não deverá haver dúvidas que um óbito por "overdose" de heroína é irrelevante (não vale mais do que "1") e que uma execução às mãos da Máfia — caso de James Sheppard, leader dos Heartbeats, desaparecido em 1970 — merece, indiscutivelmente, um "10", acossado de perto pelo "9" de Angus McLise, primeiro baterista dos Velvet Underground, vítima de malnutrição. "Honi soit qui mal y pense" mas, diria eu, que Bono, dos U2, alvejado pelas costas, durante um cordão humano contra a futura guerra EUA vs Iraque, na baixa de Bagdad, seria candidato instantâneo a um total de "30".
E Kurt Cobain? Greil Marcus ainda não se pronunciou mas, por "contribuição passada", eu dava-lhe um "6" (durante quatro ou cinco anos, o "grunge" deu ordens na cultura pop), por influência futura, levava um "5" cauteloso (não acredito muito na enésima recuperação do rock reaccionariamente "honesto" e "punkianamente" romântico, mas quem pode prever os ciclos de revivalismo cada vez mais curtos que o marketing discográfico promove?) e, quanto a "forma de morte rock" (por analogia com Bobby Bloom, célebre pelo "hit", "Montego Bay", igualmente suicida com tiro de carabina), aceitando o critério de Marcus, outro "6". O que, com um razoabilíssimo "17", o situa na segunda metade do "top ten", no mesmo escalão marcusiano dos "sétimos" de Jim Morrison e Keith Moon (dos Who), um ponto atrás de Janis Joplin e Gene Vincent, e outro à frente de Phil Ochs, o que me parece francamente injusto para este. Mas regras são regras e não há volta a dar-lhes.

Daí que seja plenamente justificada, à luz da sagrada lei do lucro, a publicação simultânea dos Diários de Kurt Cobain e do Best Of dos Nirvana. A canonização de um santo merece tudo e, oito anos após o seu suicídio e à beira do Natal (seja o Natal cristão, o das diversas indústrias do consumo, ou o felicíssimo casamento dos dois), a oportunidade não poderia ser mais apropriada. O próprio Cobain não tem a culpa toda — não terá, porventura, existido, alguém como ele, pobre adolescente retardado, emocionalmente disfuncional e narcoléptico, tão pouco apto a lidar com o sucesso — mas o mesmo, se calhar, não se deverá dizer acerca das batalhas de direitos e sucessão travadas entre a viuva-Cobain, Courtney Love, e os ex-Nirvana, Krist Novoselic e David Grohl.

E é curioso que, numa carta de 1991, Kurt escrevesse "a banda possui agora uma imagem anti-materialista, anti-consumista e não gananciosa que estamos a planear incorporar em todos os nossos vídeos" quando, ele mesmo, na nota biográfica do grupo, escrita para a imprensa por ocasião da publicação do álbum de estreia, Bleach, muito vernaculamente, declarava "os Nirvana estão convencidos que a cena underground está cada vez mais estagnada e cada vez mais pronta a vender-se à congregação dos porcos capitalistas das 'majors' discográficas. Mas os Nirvana sentem o dever moral de combater este cancro?... Nem por sombras!


De facto, na modalidade "eu vi o futuro do rock'n'roll... e ele não existe" (o que ele repetiria exaustivamente, chegando a proclamar "o rock'n'roll não tem futuro e, já hoje, a malta se está nas tintas para ele, na melhor das hipóteses, consideram-no uma boa banda sonora para as suas vidas social e sexual. Acho que as gerações futuras darão outros passos nessa estrada, aproveitando-lhe somente os sons, as notas, para as utlizar dentro das suas máquinas de realidade virtual. Só assim poderão experimentar as emoções que hoje se vivem indo a um concerto de rock"), Kurt Cobain, o autoproclamado "falhado que se xuta nos bastidores antes de entrar em palco", foi profeta. Tal como o foi quando confessou "Sempre afirmei que não gostava de armas mas, com o tempo, descobri que, na realidade, gosto, transmitem-me segurança. Sobretudo, descobri que gosto de disparar. Em geral, odeio todos os desportos mas o tiro ao alvo é muito diferente, não consigo considerá-lo um desporto como os outros. E, depois, o facto de possuir armas faz-me sentir melhor: se um dia decidisse acabar comigo, não precisaria de me atirar da merda de um arranha-céus". Ou, talvez, mais profeta ainda quando, interrogado sobre o título que desejaria dar à sua autobiografia, respondeu: "I Wasn't Thinking". (2002)
9 comments:
foi um sorriso - aqui e ali com picos de insolência audível- do princípio ao fim da leitura, aproveitando, e muito bem, um momento de mandriice (aproveito para dizer que só recentemente descobri que esta palavra tem dois is, o que a torna infinitamente mais bela e ajustada ao estado que ivoca)
invoca (tb não se justifica que tenha que encolher outras, a linha é larga)
João, isso foi tudo vontade de escrever disparates, perdeste a capacidade de ver a ironia onde ela está ou apeteceu-te apenas ser cínico?
Não, não, nada disso, gravíssimo engano: este é um excelente texto, sério, documentado e rigoroso. E ninguém está em melhor posição para o afirmar do que eu próprio que o escrevi.
Catano, estava à espera de te irritar. Safaste-te muito bem. Cheers (vou dormir que já é tarde, xiça penico).
"Catano, estava à espera de te irritar"
Ora deixa ver se me lembro... a última vez que isso aconteceu, marchavam as tropas francesas sobre a Península Ibérica. Um alferes do Junot pôs-se a citar o Deleuze e, pá, passei-me.
Eu hoje estou um bocado irritadiço. Tive uma insónia e a empregada não apareceu. Tem o miúdo doente. Se o puto morre fico sem roupa lavada uma semana. Diabos.
Nem penses que te empresto a minha.
Artigo absolutamente perfeito.
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