07 May 2007

DR. JEKYLL E MR. HYDE

O luxo-cinco-estrelas do hotel de Madrid em que Elvis Costello majestaticamente recebe acomoda-se bem com a decoração das paredes onde se multiplicam gravuras do período do terror da Revolução Francesa. Costello não fez de propósito de certeza mas não deixa de ser uma apropriada metáfora para aquilo que ele hoje é: um confortável "elder statesman" da pop a quem quase tudo é permitido mas que, nem por isso, deixou de destilar veneno como nos seus tempos de "angry young man". Uma espécie de bipolaridade Dr. Jekyll/Mr. Hyde bem presente em The Delivery Man e Il Sogno, os dois discos que acaba de editar ao mesmo tempo.

Embora já não seja caso único (Tom Waits e Nick Cave fizeram o mesmo), não é exactamente habitual publicar dois álbuns simultaneamente. Porque o fez agora com Il Sogno e The Delivery Man?
Foram dois processos que se cruzaram. Tinha começado a escrever as canções de The Delivery Man em 1999 e, pelo meio, apareceu o convite para escrever a música de Il Sogno Nos intervalos dessas duas coisas, ainda escrevi e gravei When I Was Cruel e North Como fiz cinquenta anos este ano, não me ocorreu melhor forma de o celebrar do que editar estes dois álbuns ao mesmo tempo. Ainda não ouvi os discos do Nick Cave mas os do Tom são muito reconhecivelmente discos dele. O que não acontece com estes dois meus tal como já não acontecia com North e When I Was Cruel ou até Painted From Memory. Claro que isto poderá fazer pensar que uns representam a minha verdadeira vocação e os outros são apenas coisas que faço para satisfação própria. O que é falso. Entrego-me por inteiro a tudo aquilo que faço. Podem ser diferentes no carácter ou na metodologia que uso mas, para mim, têm igual valor.


Quando começa a escrever uma canção, sabe à partida a forma final (rock'n'roll, orquestral, country) que ela irá ter?
Acho que o consigo prever. Quando escrevi King Of America, no meio dos anos 80, rejeitei a ideia de ampliar as canções para além da sua dimensão natural. "Sleep Of The Just" ou "Brilliant Mistake" poderiam facilmente ter sido transformadas em grandes épicos eléctricos mas quis manter a subtileza e intimidade que tinham e não as traír. O mesmo poderia dizer acerca das canções de North: podia tê-las escrito num registo mais agudo, puxado pela voz e usado instrumentação eléctrica. Mas isso iria distorcê-las e dar cabo da intimidade que procurei. Em The Delivery Man, também há exemplos muito extremados: de um lado, está "Button My Lip", com a banda, muito livre, intensa e improvisada, e, do outro, "The Scarlet Tide" que é só a minha voz e a da Emmylou Harris com um ukulele.



Apesar disso, sente alguma vez a tentação de "fazer a mão" num estilo determinado?
De modo nenhum. Limito-me a escrever as canções que escrevo. Houve quem tivesse pressentido algo de jazz em "Button My Lip" mas é apenas um blues lento (de um único acorde, o que não é vulgar) em 6/8. Há canções mais estruturadas como "Heart Shaped Bruise" e "Country Darkness", canções modais como "The Delivery Man", canções rock'n'roll mais tradicionais como "Monkey To Man"... Alimento-me de todos os estilos musicais e ideias que me atraem, dou-lhes a volta e tento que dessa matriz surja algo original.

Ultimamente tem confessado estar a atravessar um dos períodos mais felizes da sua vida. E, contudo, nas canções de The Delivery Man, a sua acidez e veneno proverbiais continuam bem presentes como quando em "Monkey To Man" diz coisas do género "it's been headed this way since the world began, when a vicious creature took the jump from monkey to man"...
É verdade. Foi-me confiada a sagrada missão de falar pela voz do macaco... (risos) O macaco a explicar a evolução às espécies inferiores... como a espécie humana. Podemos estar em paz na nossa vida pessoal e continuarmos a sentir-nos desconfortáveis em relação ao que acontece pelo mundo. Que é um desastre. "Monkey To Man" utiliza o humor mas, ao mesmo tempo, digo coisas como "in the fashionable nightclubs and finer precints man uses words to dress up his vile instincts" o que é a pura verdade.



Segundo me apercebi, neste disco há uma espécie de "mini-plot" que articula diversas canções...
Sim. A maior parte da informação acerca da narrativa e das personagens está na canção "The Delivery Man". Descreve a reacção de três mulheres à presença na sua vida de um homem, Abel, o "delivery man". Elas são Vivian, uma divorciada desiludida com a vida que tortura a amiga, Geraldine, dizendo-lhe que tem uma vida fabulosa o que é, obviamente, uma mentira. Geraldine é uma piedosa viúva de guerra que procura educar a filha, Ivy, no sentido de não seguir o exemplo da sua amiga desbragada mas que, secretamente, adora ouvir todas aquelas histórias. Vivian vê Abel como um objecto de luxúria e Geraldine vê-o como objecto de devoção e excitação. Ivy tem apenas curiosidade em relação a tudo aquilo. No decurso da história, acontece que Ivy e Abel desaparecem mas não sabemos para onde. A história não é contada com princípio, meio e fim, acredito que o público tenha mais imaginação do que isso. Nem sequer gravei todas as canções que se relacionam com este tema. Tenciono introduzi-las mais tarde, em concertos ou noutros discos. Apresentei apenas a informação necessária para compreender as personagens. "Button My Lip", por exemplo, é a voz de Abel, "There's A Story In Your Voice" é Vivian, "Heart Shaped Bruise" é a história do suposto casamento ideal de Geraldine com o seu marido perdido, "Nothing Clings Like Ivy" conta a história do desaparecimento de Ivy, "The Name Of This Thing Is Not Love" é uma visão do lado cruel de Abel e "Country Darkness" é a descrição do ambiente claustrofóbico de toda esta gente. O meu prazer será ir juntando todas as peças deste puzzle e, em concerto, poder introduzir uma nova revelação na continuação desta história.



Retomou, portanto, aquela ideia do Jean-Luc Godard de história com princípio, meio e fim embora não necessariamente por essa ordem...
Exactamente. Foi isso que me deu suficiente confiança para apresentar um dos momentos mais intensos do disco logo na faixa de abertura. Se tivesse optado por uma ordem cronológica convencional, seria, provavelmente, a conclusão.

A história é totalmente ficcional?
As personagens são. Mas Abel baseia-se numa figura de uma canção que escrevi para Johnny Cash, "Hidden Shame", e essa era real. Há algo que não está explícito no disco: o segredo de todos parecerem reconhecer Abel e de todas as estranhas comparações que dele fazem com Elvis ou com Jesus é porque viram uma fotografia dele em criança, num jornal, a fotografia de uma criança homicida.



Falando agora sobre Il Sogno: ao ouvi-lo, é impossível não pensar em Gershwin, Leonard Bernstein ou Aaron Copland. Concorda com isto?
Não posso dizer que tenha conscientemente imitado nenhum deles. Mas, se isso acontece, então ainda bem, prefiro ser comparado com bons compositores. Poderia enumerar alguns compositores com cujo trabalho aprendi mas nunca diria que os copiei.

Antes de começar a escrever, escutou alguma das partituras clássicas para Midsummer Night's Dream?
Não. Nem Fairie Queen, de Purcell, nem, muito especialmente — evitei mesmo ouvir —, as peças do Mendelssohn ou do Britten.
Absorvi muita música por tê-la ouvido, nunca estudei música nem orquestração academicamente. Algumas ideias poderão ter-me servido como modelo mas espero que com suficiente originalidade para não soarem como pastiche ou paródia. Em Il Sogno, decidi partilhar com o público o conhecimento comum dos idiomas musicais que utilizo para produzir um efeito cómico. Com as personagens da corte, no primeiro acto, por exemplo, utilizei deliberadamente grandes fanfarras e crescendi grandiosos à beira do ridículo assim como foi uma decisão minha a transformação das fadas em "jazz fairies" com alusões ao r&b e ao swing... Mas, já agora, se me inspirei em alguém, não foi em nenhum daqueles que referiu na sua pergunta.

Quais foram então?
Nem pense que lhe vou dizer! (risos)(2004)

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