17 March 2007

ESTA É A VOSSA TERRA


Woody Guthrie/This Machine Kills Fascists (DVD real. Stephen Gammond)

Foi a aspirante a actriz, Flo Castner, quem fez Bob Dylan escutar pela primeira vez um álbum de Woody Guthrie. Segundo ele conta, em Chronicles Volume One, "Quando a agulha desceu sobre o disco, fiquei estupefacto — não percebia se estava pedrado ou não. (...) Todas aquelas canções, uma a seguir à outra, puseram-me a cabeça a andar à roda. Fiquei sem fôlego. Era como se a terra se tivesse dividido ao meio. (...) Ele era imensamente poético, duro e rítmico. Tinha uma enorme intensidade e a sua voz era como uma lâmina. Era diferente de todos os cantores que já tinha ouvido e as suas canções também. (...) Para mim, foi uma epifania, como se uma pesada âncora tivesse mergulhado nas águas do porto. Nesse dia, passei a tarde toda a ouvir Woody Guthrie, como se estivesse em transe. (...) Através das suas composições, a minha visão do mundo tornava-se muito mais nítida. Disse a mim mesmo que iria ser o maior discípulo de Guthrie. (...) Era verdade que Woody Guthrie nunca me tinha visto ou ouvido mas senti como se ele me dissesse: 'Vou partir, mas deixo-te esta tarefa nas mãos. Sei que posso contar contigo'". Pouco depois, o muito jovem Dylan visitaria Guthrie por diversas vezes no pesadadelo do hospital psiquiátrico de Greystone, em New Jersey, de onde — terminalmente devastado por uma doença neurodegenerativa (a coreia de Huntington) — já não voltaria a sair e, aí, materializaria essa passagem de testemunho.



This Machine Kills Fascists (a frase que Woody Guthrie inscrevera na sua guitarra acústica), um documentário de cerca de três horas realizado por Stephen Gammond, reconstitui, então, a biografia do singer-songwriter que não só determinou o futuro de Bob Dylan como o de Phil Ochs, Springsteen (o seu Ghost of Tom Joad deve tanto a Steinbeck como às canções homónimas de Guthrie) e de muitos outros. Por exemplo, Billy Bragg que, no documentário, desempenha o papel de narrador principal e que, juntamente com os Wilco, recuperou quinze dos muitos textos inéditos que Woody deixara na cave da sua casa em Coney Island e os musicou no álbum Mermaid Avenue, de 1998, sob convite da irmã deste, Nora Guthrie. É Bragg que, logo no início, o define como "o último dos grandes compositores de baladas isabelinas, o 'singer-songwriter' original e o primeiro músico alternativo" e não exclusivamente o "Dust Bowl balladeer" e fundador da "canção de protesto" moderna que as enciclopédias de música popular habitualmente referem.
Pete Seeger (que com ele cantou nos Almanac Singers), o filho Arlo, Nora e vários amigos, historiadores e arquivistas da Guthrie Foundation vão, peça a peça, completando o puzzle da sua história que — e é essa uma das maiores virtudes do filme — se confunde com uma boa parte da história da própria América no século XX: o Sul rural varrido pelas avassaladoras tempestades de areia na década de 30, a miséria dos migrantes para as "vinhas da ira" na Califórnia, os anos da Depressão, as lutas dos sindicatos dirigidas pelo Partido Comunista (de que o autor de "This Land Is Your Land" foi um "compagnon de route" que chegou a ter uma coluna no "Daily Worker", o jornal do partido), a segunda Guerra Mundial, o mccarthysmo e o despertar do interesse pela folk-music nos círculos intelectuais da esquerda novaiorquina que o acolheram enquanto representante legítimo da alma profunda da "land of the free".

Se não são muitas as imagens registadas em filme de Guthrie, isso é aqui compensado (para além das canções enraízadas na tradição popular norte-americana) por gravações da sua voz realizadas por Alan Lomax para os arquivos da Library Of Congress, onde o podemos escutar, no característico "southern drawl" de Oklahoma, a descrever as mesmas gentes, lugares e acontecimentos que, em 1943, ampliaria na autobiografia, Bound For Glory (vertida para o cinema por Hal Ashby, em 1976). Já perto do final do documentário, Pete Seeger conta como, aquando de uma das visitas ao hospital de Greystone — onde, em 1967, Woody acabaria por morrer aos 55 anos—, ficou perplexo ao ouvir da boca dele que aquele era o local mais livre da América. A justificação de Woody foi simples e imediata: "Diz-me outro sítio onde, sem ninguém te incomodar, possas saltar para cima de uma mesa e gritar que és comunista!". (2005)

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