24 January 2007

UM SOPRO SAGRADO


Judee Sill tinha acabado de, milagrosamente, assinar contrato com a Asylum de David Geffen para a qual, aliás, iria ser a primeira artista a gravar. Geffen perguntara-lhe "O que queres?". "Ser uma estrela". "How big?", insistira Geffen. "How big is the limit?" fora a resposta dela. Mas, no primeiro dia de gravações, quando se dirigia para o estúdio (e se preparava para fazer, sem complexos, o que nunca antes tentara — dirigir uma orquestra), apercebeu-se que um Mercedes lhe bloqueava a saída do carro. Compromissos são compromissos e Judee não hesitou: saltou para o seu automóvel e investiu furiosamente contra o Mercedes até que, à força, conseguiu arredá-lo do caminho. Não era simples, de facto, a sua relação com os automóveis. No pior de vários acidentes que lhe iriam arrasar a coluna vertebral e transformar os últimos anos de vida num inferno, chocou de frente com o carro de Danny Kaye no cruzamento da Bronson com Franklin, em L.A., e foi John Wayne quem a transportou para o hospital. Segundo um relato apócrifo, a reacção posterior de Sill terá sido "Nem queria acreditar que era o Wayne, ele é completamente careca!". Sim, Judee Sill era imprevisível, impulsiva e frequentemente insuportável. E genial. E nunca seria uma estrela.


Gravaria, na realidade, apenas dois álbuns, Judee Sill (1971) e Heart Food (1973) e deixaria um terceiro, Dreams Come True, incompleto. Foram os três, há pouco, finalmente reeditados (Dreams Come True foi restaurado pelo fã, Jim O'Rourke) e, para quem só agora a conheça, é um daqueles casos exactos em que só se pode falar de "revelação". No sentido místico também, se quiserem. Porque, explícita ou implicitamente, todas as canções de Judee Sill se debatem entre aqueles dois polos a que ela uma vez se referiu ao falar de "Down Where The Valleys Are Low" (um vertiginoso bordado de gospel e doo-wop): "It's about the place where romantic love and divine love meet and the holy fires begin to burn". Tratava-se, afinal, de outra coisa: redenção. Judee Sill, filha de pais alcoólicos, empurrada de escola para reformatório, delinquente juvenil condenada e presa por assalto à mão armada, "junkie" desde muito cedo e prostituta para alimentar o hábito, levaria os trinta e cinco anos da sua vida (morreria de "overdose" em 1979) na busca desesperada de um qualquer sentido que a orientasse por entre os destroços. Confessava-se discípula de Bach, Mahler e Pitágoras mas ouvia também Dylan, Sister Rosetta Tharp, Beethoven, Buffy St. Marie. Envolveu-se com os Rosa-Cruz, a Teosofia, a Alquimia e o misticismo cristão, conviveu com Neal Cassidy (o Dean Moriarty do "On The Road", de Kerouac), Ken Kesey e Bukowski, devorava Baudelaire, Swinburne, Rimbaud. A sua música — a que, displicentemente, chamava "country-cult-baroque" — era do que de mais refinadamente complexo a canção pop (sem deixar de ser canção pop) conheceu. A propósito destas reedições, Andy Partridge (XTC) declarou que, ao contrário do que habitualmente se afirma, a sua veia de joalheiro-pop não descende de Brian Wilson mas sim de Judee Sill e não custa a acreditar. As polifonias vocais e instrumentais, a incrível "profundidade de campo" de melodias e orquestrações, a agilidade com que passava da country ao gospel, à folk, aos blues ou ao contraponto clássico, fazem dos seus dois álbuns o género de "sagradas escrituras" a que, ainda que tardiamente, é obrigatório regressar sempre.


Heart Food é, pura e simplesmente, matéria de ortodoxia. "The Kiss" ("Love, rising from the mists, promise me this and only this, holy breath touching me, like a wind song, sweet communion of a kiss") abre o leque da hierofania. "The Pearl" identifica o "deceiver" ("I've been looking for someone who sells truth by the pound, then I saw the dealer and his friend arrive but their looks looked grim"), "Soldiers Of The Heart" refere-se aos mesmos "fuzileiros do mundo espiritual" de Cohen, "The Vigilante" é personagem da estirpe dos "misfits", amantes, "heartbreakers" e cristos dos "Phantom Cowboy", "Ridge Rider" e "Archetypal Man" do álbum de estreia, "The Phoenix" ergue-se "on phosphorous wings", "When The Bridegroom Comes" encena o ritual gnóstico da câmara nupcial e "The Donors" abre-se num imenso "kyrie" de mil vozes antes da irrisão final em forma de arpejo de piano estendendo o tapete para uma "jig" anedótica. Dois anos antes, estava já quase tudo em Judee Sill: os "Crayon Angels" ("My mystic roses died, guess reality is not what it seems, so I sit here hoping for truth and a ride to the other side"), os gnosticismos de "The Lamb Ran Away With The Crown" ("Once I heard a serpent remark 'if you try to evoke the spark you can fly through the dark'"), a bachiana pop de câmara, a fuga em "Enchanted Sky Machines" e, a encerrar, em "Abracadabra", o brinde à perdição no interior do labirinto: "Here's to the man who forgot his way home, who silently narrates the confusion of his fight". Um e outro passariam quase completamente despercebidos. Acerca dos esboços de Dreams Come True, nunca saberemos se Judee Sill os desejava assim mesmo, mais convencionalmente country-gospel e, quase pateticamente, abeirando-se de uma espiritualidade mais resignada e tradicionalmente cristã. Mas, mesmo aí (e, sobretudo, no resto), cintilava a "spark" que lhe permitia voar "through the dark". (2005)

4 comments:

Anonymous said...

http://www.webnoir.com/bob/music/

João Lisboa said...

Olhó cofre do tesouro!...

Thanx.

Anonymous said...

Judee Sill foi realmente fantástica. Se ao menos ela tivesse vencido seus problemas...

Zest Artes e Comunicação said...

Kerouac, Bob Dylan, Tom Waits, Nick Cave, Judee Sill... Realmente estou encantada com o blog!