CRÓNICA DAS CIDADES MORTAS
Scott Walker - The Drift
"Isto não é um álbum pop, é um pesadelo. Um filme de terror, em parte Cocteau e, noutra parte, Jodorowski. (...) Há coisas que se lançam sobre nós como nos "jump cuts" de um filme de terror. Coisas totalmente inesperadas, coisas que nunca antes ouvíramos num álbum pop. Tudo é fantasmático, à deriva, abstracto, assombrador — e, subitamente, uma erupção de ruído, de horror puramente lívido. (...) Se este é um disco aterrador, é também incrivelmente original e audacioso. A clareza da voz de Walker, a estranheza dos seus arranjos (na entrevista para o 'Culture Show' da BBC, ele afirma que já não escreve arranjos, limita-se a alinhar blocos de som) e da sua poesia inquietante obrigam-nos a pensar 'Mas que raio andamos nós todos a fazer com este meio de expressão? Porque não o tratamos como se tratasse de escultura como Scott o faz? Não existem regras! Tudo é possível!".
Quem o escreve é Momus/Nicholas Currie, no seu "Live Journal" da web, visivelmente à beira do estupor, perante a radical terraplanagem sonora, emocional e intelectual que é a escuta de The Drift, o último álbum de Scott Walker, onze anos após esse outro mergulho no coração das trevas que foi Tilt, que demorara também onze anos a suceder a Climate Of Hunter (mais um objecto inclassificável que abria com a declaração "This is how you disappear out between midnight, called up under valleys of torches and stars"). E o "understatement" de afirmar que não se trata de um "álbum pop" só pode ser consequência da inevitabilidade de se ficar inteiramente desorientado, na busca das palavras exactas para descrever a experiência: em The Drift, o conceito clássico de "canção" foi definitivamente evacuado e substituído por uma desmesurada encenação do pavor do mundo enquanto matéria prima, um contínuo claustrofóbico de grandes planos astigmáticos sobre uma realidade acerca da qual já não é possivel uma narrativa convencionalmente estruturada, uma crónica demente das cidades mortas, um palco para uma sufocada coreografia de espectros.
Scott Walker escreve como Bacon pintava, pinta como Penderecki ou Ligeti compõem, compõe como Joyce, T.S. Eliot, Müller ou Burroughs (sim, esses todos juntos) escreviam: o cadáver de Clara Petacci, a amante de Mussolini, baloiça sobre um cenário onde os gémeos Elvis e Jesse Presley encarnam uma metáfora-silhueta das Twin Towers em escombros ("Famine is a tall, tall tower, a building left in the night, Jesse are you listening? It casts its ruins in shadows under Memphis moonlight") enquanto a barbárie marcha sobre o horizonte ("With an arm across the torso, face on the nails, cossacks are charging in, charging into fields of white roses"), as visões se cavalgam ("World about to end, world about to end, world about to end, wind blows hair in a windowless room", "Polish the fork and stick the fork in him, shinier still and stick the fork in him", "The breasts are still heavy, the legs long and straight, the upper lip remains short, the teeth are too small") e, pelo meio de um devastado libreto de ópera sepulcral, uma voz estrangulada de barítono uiva "I'm the only one left alive!".
A partitura, é o próprio Scott Walker que, no acto final, "A Lover Loves", lhe desenha as coordenadas: "This is a waltz for a dodo, a samba for Bambi, a gavotte for the Kaiser, a bolero for Beuys, a reel for Red Rosa, a polka for Tintin". Desde 1983 e Music For A New Society que o fedor da peste não nos agoniava tão de perto. (2006)
5 comments:
Caríssimo,
perdoe-me o off topic e que não me limite ao Scott Walker que não conhecia (e vou conhecer...), mas quero aproveitar esta caixinha para lhe agradecer uma tarde bem passada.
Estava longe de pensar que voltaria a ouvir os Gang of Four tantos anos volvidos...fico expectante em relação ao novo trabalho do Eno e "icing on the cake" a Aimee Mann e aquele video fantástico do "Save Me" de um dos meus realizadores preferidos...
Se no que vai de mês este blogue já nos proporcionou tudo isto (e o mais que não referi...), há boas razões para pensar que se tornará incontornável. Vai já para o meu Bloglines e para a sidebar do meu blogue...
Abraços.
We aim to please.
tenham medo, muito medo...ou como a realidade scottiana se vislumbra cada vez mais negra com o avançar dos anos.
inovação ou expiação?
Grande texto, João. Até te digo que gostei dele mais agora em segunda leitura que na altura em que o escreveste. Abraço.
Abraço, Boni Prince.
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