29 November 2024

HERDAR AS VOZES

Durante uma considerável parcela da sua história, e, particularmente, durante o Estado Novo, o fado não gozou de imaculada reputação junto de intelectuais e oposicionistas do regime salazarista/marcelista. Eça de Queiroz, logo desde o início, não pesava as palavras: "Atenas produziu a escultura, Roma fez o direito, Paris inventou a revolução, a Alemanha achou o misticismo. Lisboa que criou? O fado. Tem uma orquestra de guitarras e uma iluminação de cigarros. A cena final é no hospital e na enxovia. O pano de fundo é uma mortalha”. Pinto de Carvalho/Tinop, autor de uma História do Fado (1903), enterrava a lâmina ainda mais fundo: “O fadista, minado de taras, avariado pelas bebidas fortes e pelas moléstias secretas, com o estômago dispéptico, o sangue descraseado e os ossos esponjados pelo mercúrio - é um produto heteromorfo de todos os vícios, atinge a perfeição ideal do ignóbil”. E, mais à frente, Fernando Lopes-Graça - compositor e investigador das tradições musicais populares - apenas encarava o fado como “canção incaracterística e bastarda, o execrando fado, produto de corrupção da sensibilidade artística e moral quando não indústria organizada e altamente lucrativa” (A Canção Popular Portuguesa, 1953). Embora já algumas décadas adiante, e após a transformação profunda que Amália Rodrigues e Alain Oulman lhe haviam imprimido, ver José Mário Branco, o autor de "A Cantiga É Uma Arma" ("O faduncho choradinho, de tabernas e salões, semeia só desalento, misticismo e ilusões, canto mole em letra dura, nunca fez revoluções", 1975), em ameno convívio com fadistas não seria algo de muito previsível. Mas foi por aí mesmo que se iniciou a história conjunta de Zé Mário e Camané que, agora, em Camané ao Vivo no CCB – Homenagem a José Mário Branco este recorda. 

    JOÃO LISBOA - Como foi o vosso primeiro encontro? 

    CAMANÉ - Quando era ainda muito novo, escutava-o como ouvinte vulgar (neste disco canto alguns temas que me fizeram chegar a ele por ter gostado muito de o ouvir). Depois, uma noite que ia a sair do "Faia", tinha eu, para aí, 19, 20 anos, encontrei o Zé Mário com o Carlos do Carmo. Estavam a fazer um concerto suponho que no S.Luis, e o Carlos do Carmo apresentou-mo. Foi muito simpático e apercebi-me que ele já gostava de fado, tinha-se rendido ao fado. Entretanto, na altura, a Aldina Duarte organizava uns finais de tarde de fado no Teatro da Comuna e o Zé Mário, de vez em quando, ia ouvir-me. Começámos a falar imenso sobre fado e sobre a visão que ele tinha do fado que era muito parecida com a minha: o fado tem uma estética muito própria, as pessoas ouvem um fado e, intuitivamente, identificam-no como fado. É importante manter isso, não perder essa referência no percurso do passado para o futuro. Foi fantástico ele ter-me dito que sim quando lhe pedi para produzir um disco meu. (daqui; segue)

"Emigrantes da quarta dimensão (Carta a J.C.)"

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