29 December 2021

Com padrecas pelo meio, "trabalho académico sério" é que não sai de certeza... e procurar "pontes de entendimento" entre religião e ciência é exactamente o mesmo que tentar misturar água e azeite (sugerido aqui; ver também aqui, aqui e aqui)

5 comments:

Miguel said...

«Rendez-vous with Rama», Arthur C. Clarke

Exmo. Senhor, estou desolado por ter de lhe revelar que a Ciência é compatível com toda e qualquer bipolaridade humana (lembre-se, logo à cabeça, de Newton e a astrologia). Mas chamo-lhe também a atenção de que com esta conversa estou numa de filosofia barata. O problema prático que o Dawkins vai ter grande, enorme, dificuldade em resolver é o de convencer alguém com elevada literacia científica a lavar-lhe as casas de banho lá do departamento em Oxford... É caso para lhe enviar um email: se ajudares um génio a escapar da garrafa, pensa bem em vez de lhe pedires o primeiro desejo que te vier à cabeça!

João Lisboa said...

"a Ciência é compatível com toda e qualquer bipolaridade humana"

Isso, em português, significa o quê?

"Newton e a astrologia"

Sec. XVII/XVIII.

"com esta conversa estou numa de filosofia barata"

Já tinha reparado.

"O problema prático que o Dawkins vai ter grande, enorme..."

Hã?...

Miguel said...

No XVII Galileu que era crente deitou abaixo a cosmogonia cristã. No XIX, Darwin crente também "terminou" o trabalho. Feitos, aliás, bastante mais "incompativeis" com a religião do que substituir as equações de Newton pela equação de Schrödinger (personalidade também algo suspeita com mais do que laivos de misticismo). A verdade é que, passados séculos, os resultados científicos perduram, as crenças dos senhores estão esquecidas (já não têm importância) e ninguém quer saber delas para nada. Mas é evidente que não foram incompatíveis.

Hoje em dia, se um cientista puder ter uma concepção bipolar do mundo - a traço grosso, ciência para descrever os fenómenos e religião para iluminar como deve viver -, então a ciência e a religião compatibilizam-se dessa maneira. O teste desse "se" é empírico (não é apriorístico): se houver bons cientistas crentes então a compatibilidade é manifesta. A "culpa" não é minha, é deles.

O problema de Dawkins, numa veia irónica sublinho, é o de nos explicar, por exemplo, que raio de "weltanschauung" ateia uma mulher imigrante africana (por exemplo), que é quem em 95% dos casos lava as casas de banho, pode ter. Vai deixar Jesus em nome de Darwin e de Einstein, pelo amor da santinha? Por que razão, se não sabe diferenciar nem integrar e se nenhum dos seus filhos, salvo por uma conjugação extremamente improvável de circunstâncias, será aceite em Oxbridge ou na Ivy League ? Essa batalha que Dawkins lidera de forma quase fanática, ao ignorar as realidades sócio-económicas e históricas, revela uma enorme insensibilidade e hipocrisia. Isto digo eu que, graças a Deus, sou ateu.

João Lisboa said...

"No XVII Galileu que era crente deitou abaixo a cosmogonia cristã. No XIX, Darwin..."

E pode prolongar infinitamente a lista. A questão é que a incompatibilidade entre fé e ciência é total. Um matemático, um físico ou um biólogo de uma qualquer fé podem ser extraordinários matemático, físico ou biólogo, mas nunca serão, de facto, cientistas.

"uma concepção bipolar do mundo - a traço grosso, ciência para descrever os fenómenos e religião para iluminar como deve viver"

Esse é um ponto ainda mais interessante. A religião, na sua essência, não serve para "iluminar como (se) deve viver". Isso é o pelouro da moral. A religião (as religiôes) oferece(m) uma "explicação do mundo". O universo ter sido criado em 7 dias, ter surgido de um ovo da Grande Avestruz Cósmica ou do calcanhar do Divino Xarezuzu não tem rigorosamente nada a ver com amar pai e mãe, não enfiar o pirilau em orifícios não aprovados ou ter o Ricardo Salgado como modelo de comportamento. Como de uma coisa teria de decorrer, inevitavelmente, a outra sempre me escapou.

"que raio de "weltanschauung" ateia uma mulher imigrante africana..."

A "mulher imigrante africana" - ou paquistanesa ou brasileira ou moldava - como a empregada portuguesa da caixa do Pingo Doce, não está irremediavelmente impedida de usar os neurónios de forma útil. Embora "as realidades sócio-económicas e históricas", de facto, tornem isso bastante difícil. Mas não é, obviamente, a ela(s) que o Dawkins se dirige: ele fala para quem, pela sua acção, possa contribuir para que os filhos e netos dela(s) disponham dos horizontes, da informação e das referências que lhes permitam libertar-se da canga religiosa.

"Essa batalha que Dawkins lidera de forma quase fanática, ao ignorar as realidades sócio-económicas e históricas, revela uma enorme insensibilidade e hipocrisia"

Não é assunto que se possa abordar com paninhos diplomaticamente quentes. O rótulo de "fanático insensível e hipócrita" é inevitável mas não há maneira melhor de abordar a questão.

" Isto digo eu que, graças a Deus, sou ateu"

:-)

Daniel Ferreira said...

«O problema prático que o Dawkins vai ter grande, enorme, dificuldade em resolver é o de convencer alguém com elevada literacia científica a lavar-lhe as casas de banho lá do departamento em Oxford»

Desde que os europeus de leste invadiram o Ocidente após a Perestroika, tornou-se trivial encontrar gente com elevada literacia científica a limpar sanitas. E, como sabe, em Portugal há muitos portugueses licenciados a fazer trabalhos mais básicos. Não é preciso convencê-los a fazer esses trabalhos: a necessidade é o que é. E falo por experiência própria.

«Mas é evidente que não foram incompatíveis.»

Eram outros tempos, em que as mentes mais iluminadas não tinham sequer um milésimo da informação científica de que hoje dispomos. Além de que não era simples nem livre de perigo uma pessoa assumir-se como ateia.

«Feitos, aliás, bastante mais "incompativeis" com a religião do que substituir as equações de Newton pela equação de Schrödinger».

O exemplo que dá não se refere a uma substituição. E não entendo qual a relação com a religião.

«ciência para descrever os fenómenos e religião para iluminar como deve viver».

Falsa questão. Problema de compatibilidade é, como eu já vi num documentário, um padre astrónomo dizer que o seu conhecimento científico reforçou a sua fé.

Para o João Lisboa: a religão, tal como outros factores (como a tradição), influencia a moral, e a moral não permite um tratamento objectivo e racional das questões que aqui se referiram. A ética é que pretende encontrar um conjunto de valores universais baseados na lógica e, portanto, independente de influências religiosas e outras.

« ele fala para quem, pela sua acção, possa contribuir para que os filhos e netos dela(s) disponham dos horizontes, da informação e das referências que lhes permitam libertar-se da canga religiosa.»

Exactamente. Não espero discutir estes assuntos com certas pessoas que, pela sua educação e circunstâncias da vida, não têm qualquer obrigação de possuir um conhecimento científico minimamente avançado. Mas, da mesma forma, também não perco o meu tempo a discutir com que tem esse conhecimento e insiste em defender a integridade do hímen mariano.