Sobre a China, o que sabemos? Cerca de 1 500 000 000 cidadãos, 9 596 961 km², 56 grupos étnicos, 302 línguas vivas. Um regime político implacavelmente autoritário que instituiu (e exporta) um sistema de vigilância e controlo social permanentes através de tecnologias digitais de reconhecimento facial, recolha de dados biométricos e de amostras de ADN para a criação e identificação de perfis étnicos, ou, ainda, por meio da utilização – nas empresas e forças armadas – de inquietantes programas de Inteligência Artificial para a “vigilância emocional” que monitorizam e analisam as ondas cerebrais de trabalhadores e militares. Um governo que, há um ano, pôs em marcha um vasto programa de cibersegurança, segundo o seu responsável, Guo Qiquan, “destinado a cobrir cada distrito, cada ministério, cada empresa, incluindo todas as redes, sistemas de informação, plataformas da ‘cloud’, internet das coisas, sistemas de controlo, ‘big data’ e internet móvel”. Um Estado que, passo a passo, planificadamente, se vai apoderando de alavancas decisivas da economia mundial. O ponto de origem de uma tremenda erupção pandémica e de quarentenas compulsivas que se derramaram sobre o mundo. Sabemos muito e muito pouco.
33EMYBW - Dong2 (álbum integral aqui)
Mas, apesar de, milenarmente (pelo menos, desde a dinastia Chou, de 1122 AEC a 256 EC), as relações entre música e sociedade serem de primordial importância – em O Jogo das Contas de Vidro, Herman Hesse fala do antiquíssimo filósofo chinês que afirmava: “A música de uma época de ordem é calma e serena e o seu governo equilibrado. A música de uma época inquieta é excitada e feroz e o seu governo é perverso. A música de um estado decadente é sentimental e triste e o seu governo é instável” – ignoramos quase tudo o que, no que respeita à música, se agita no Império do Meio.
“A imagem que o mundo tem da China é a do operário fabril anónimo ou a do novo rico de mau gosto que adquire propriedades por todo o lado, os 1 500 000 000 de pontinhos negros no horizonte que sugam os recursos. Não se compreende que existem também 1 500 000 000 de espíritos potencialmente criativos neste país”, dizia, em Outubro de 2013, à “Redefine Mag”, Helen Feng, “a Blondie chinesa”, fundadora das bandas Free the Birds, Pet Conspiracy, Nova Heart, e da editora FakeMusicMedia. E, há dois anos, à “China Underground”, acrescentava: “Quando comecei, no princípio do século, só havia pop stars pré-fabricadas, artistas de linha de montagem, com as mesmas coreografias, meras caricaturas da pop ocidental ou que cantavam hinos nacionalistas. Nessa altura, enriquecer através da música não era uma opção. Agora, já é e os artistas vivem um conflito: até onde desejam conduzir a sua expressão artística? Deverão andar na linha, pisar a linha, ou fazer o tipo de música que lhes assina os cheques?”
Chinese Football - Continue?
A verdade é que, por muito que as autoridades chinesas pretendam entravar o conhecimento da realidade local, actualmente (entre publicações online, blogs, YouTube, bandcamp, SoundCloud et alia), é bastante fácil o acesso a um universo musical em que foram há muito esquecidas as Teses de Yenan nas quais Mao Tsé-Tung decretava que não existe arte pela arte e que esta deveria obrigatoriamente estar – seja lá isso o que for – “ao serviço do povo”. Recheará ou não contas bancárias mas uma certeza é imediata: em Pequim, Xangai (os dois polos principais), Guangzhou/Cantão, Wuhan, Hangzhou, Xiamen e Shenzhen, publicada por editoras como Maybe Mars, SVBKVLT, Modern Sky, Wild Records, Qiii Snacks, Field Ring Recordings, Eating Music, Merrie Records ou Boring Productions, e apoiada por clubes, fãzines, distribuidoras de cassetes e uma activíssima rede DIY, cria-se alguma da música mais excitante e inovadora que pode ser ouvida hoje em qualquer lugar do planeta.
Guzz - Walking In A Boundless Dream (álbum integral aqui)
Concentrando-nos apenas em edições recentes – o que excluirá injustamente bandas como Carsick Cars, Snapline, David Boring, Joyside, SMZB, ou os monumentais Stalin Gardens –, não é imprescindível nenhuma identidade especificamente local para que se dedique atenção incondicional a cada banda ou músico. Mas, quando isso ocorre, é impossível não reconhecer que há muito não se escutavam gravações como Dong2 de 33EMYBW (aliás, a produtora e artista visual Wu Shanmin, dedicada a cerzir ritmicamente "samples" distorcidos de cânticos da minoria Dong do sul da China em intrincados labirintos de electrónica iridescente), Walking in a Boundless Dream, de Guzz (timbres instrumentais de Myanmar, Índia, e Japão digitalmente simulados para a edificação de um fantástico e luminoso puzzle sonoro) ou Left Foot Dance of the Yi, dos Shanren (espécie de Pogues das montanhas de Yunan). É, porém, em géneros musicais aparentemente esgotados no Ocidente que se descobrem insuspeitos e vigorosos sinais de vida. É o caso do "shoegaze" que os Rubur, de Xangai, em Evening Sitdown Vision, expandem desmedidamente em turbulentas muralhas sonoras e os Default, de Life in a Vacuum, psicadelizam e dissolvem em imponderáveis coreografias espaciais; mas também, inesperadamente, o "math-rock", ao qual os Foster Parents, em Idle Archipelago, oferecem uma inesgotável obra-prima, intrigantemente angulosa e repleta de detalhes, os Shanghai Qiutian, de New Era, Shared Future, observam à lupa, desagregam molécula a molécula, e reconstituem sob registo de câmara, e, em Neo Eniac, os GriffO desviam para um rumo "lounge" tecnóide, ritmicamente irrequieto e imprevisível.
Hai Qing e Li Xing - Utopian Daymare (álbum integral aqui)
Magnificamente a leste de todos os géneros, Utopian Daymare, de Hai Qing e Li Xing, é um objecto gloriosamente inclassificável, a menos que se encare como primeiro exemplo histórico do oxímoro punk-prog: lugar de confronto entre rudes melodias de inspiração mongol, razias eléctricas de guitarra e sheng amplificado, curto-circuitos de trompete em modo radicalmente "free" e cenários de um Morricone asiático, terá sido o enorme e truculento álbum de 2019 em que o mundo, desgraçadamente, não reparou. I Feel Good, dos Bootlegs, entretanto, é o exacto tipo de disco – uma pequena jóia cintilante de surf-pop com reflexos de Velvet Underground – a que Quentin Tarantino chamaria um figo se lhe passasse por perto, embora também não torcesse o nariz a Watermelon, dos Thin City, preciosidade de art-punk requintadamente sem maneiras.
Num tão lauto banquete, facilmente poderia cair-se no erro de deixar passar despercebidos 100%, dos Peach Illusion (indie-pop de calções de banho), Continue?, dos Chinese Football (os Sundays renascidos em Wuhan), Nightflow, dos Daytrip Dormancy (electrónica líquida e krautrock desarticulado) ou Eye, dos Chui Wan (psicadelismo em filigrana). Mas, de entre 1 500 000 000 criaturas, é inevitável que estes e muitos outros possam ficar esquecidos. O que deverá recordar-se sempre, contudo, é que uma das marcas inaugurais do rock na China foi “Nothing To My Name”, de Cui Jian, hino dos revoltosos de Tiananmen, na Primavera de 1989.
2 comments:
"Um regime político implacavelmente autoritário"...Um artigo em que fugimos à palavra comunista, ou à realidade dos dois sistemas...
Comunista???!!!... seja lá isso o que for, já nem o Comité Central do PCC deve achar que a China é "comunista"...
O que nem tem, realmente, importância nenhuma para o caso: a China é um inferno totalitário como, aliás, neste "label"
https://lishbuna.blogspot.com/search/label/China
é absolutamente óbvio. E, sendo-o, tanto faz pintar-se de uma ou de outra cor.
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