17 March 2020

“A EVA SOU EU”


Segundo informa o site “Ancestry” – dedicado ao estudo das genealogias – a família Haussman é de origem judia (Ashkenazi)-alemã e fixou-se nos EUA, em particular, na Pensilvânia. Os homens eram, essencialmente, comerciantes e as mulheres bibliotecárias. Mas não foi isso que atraiu a artista anteriormente conhecida como Cristina Branco para a criação de Eva Haussman, alter-ego e figura central de Eva, o belíssimo álbum em que propôs a Filipe Sambado, Márcia, Kalaf, Francisca Cortesão, Pedro da Silva Martins e Luís José Martins que narrassem a sua história. 

    Andei a investigar a Eva Haussman e descobri que ela tem 48 anos...

Faz este ano 48 anos...

    E, aparentemente, a família Haussman, por volta de 2004, tinha uma esperança média de vida de 80 anos. A Eva nasceu no dia 2 de Março de 2006, na Dinamarca, no Museu de Arte Moderna da Louisiana, em Øresund. E, coisa extraordinária, nasceu já adulta, com 34 anos! 

É incrível, não é?... (risos) A Eva é um alter ego...

    Alter ego ou heterónimo?

Alter ego. Porque, no fundo, ela é alguém que eu também sou, se calhar, de uma forma mais empolada. Nasceu num momento de cisão com uma série de coisas na minha vida que tive de reequacionar e resolvi parar para pôr tudo em perspectiva. Não para partir do zero – porque tens toda uma bagagem, toda uma herança – mas para pensar o que queres dali para a frente, o que esteve mal, o que vamos mudar. Fui para o Museu de Arte Moderna da Louisiana, na Dinamarca (sou muito amiga do director artístico) e lá têm residências artísticas em que recebem muitos convidados. Perguntei se poderia lá ficar cinco dias, absolutamente sozinha, só para me repensar. Gostava muito do nome Eva e comecei a construir um perfil. Ela nasce com essa idade mas é fotógrafa, tem um guarda-roupa, fuma com boquilhas todas compradas em leilões e com uma particularidade: todas pertenceram a cantoras negras americanas. Tem assim uns fetiches... É filha de uma mulher da Martinica e de um francês.

    Mas tem um apelido alemão... 

Sim, mas é um lado da família que tem a ver com a primeira Guerra Mundial... o barão Haussmann, do Boulevard Hausmann, tem a ver com isso, são alemães mas também franceses. Nesses cinco dias, foi surgindo tudo aquilo que tinha para me agarrar. Escrevo todos os dias mas, desta vez fi-lo de uma forma ainda mais intensa. Fui construindo esta personagem – na altura, achava que era uma personagem –, ela foi ganhando forma. E, de repente, fiz aquela pergunta básica quando se chega aquele ponto da vida, aos 34 anos: o que é para ti a liberdade? O que queres a partir daqui? E comecei a construir meia dúzia de premissas que eram importantes para a Cristina e que faziam parte da personalidade da Eva. Fiz um retrato do que achava importante para mim a partir daquele instante.

    Esses cinco dias foram, então, o trabalho de parto da Eva?

(risos) Cinco dias a nascer, imagina!...

    

    Mas porque foi necessário criar essa personagem?

Não foi necessário, foi uma casualidade, aconteceu assim. Comecei a escrever e surgiu a parte mais material da Eva, as características físicas. E, de repente, ela já era eu, já éramos as duas a mesma coisa. Eu queria ser aquela mulher, aquela vontade de ser livre tinha de me pertencer.

    Portanto, pode dizer-se que essa construção foi um gesto muito mais terapêutico do que teatral...

Absolutamente terapêutico.

    Não foi uma coisa tipo David Bowie e Ziggy Stardust?...

Não, não. Nada disso. Isto tudo aconteceu e, de repente, já era o meu endereço de email, o meu perfil de Facebook, este nome aparece na minha vida hoje em dia. Perguntam-me se, quando me tratam por Eva, não é uma coisa estranha? Não, ela faz parte da minha vida há 13 anos. Já não é uma personagem.

    Nem um pseudónimo, nem um heterónimo, é mesmo um alter ego...

Claro.

    Chamar-se Eva também não terá sido um acaso... 

Por acaso, foi! Não tem nada de personagem mitológica, não está envolta em religiosidades nem em conotações católicas, não tem nada a ver com o Génesis, é a antítese da "femme fatale", aquela coisa da maçã, da árvore e do Adão, nunca pensei sequer nisso. É um nome de que sempre gostei muito. Claro que apetece ir por esse lado. Mas ela desconstrói tudo isso.


    Poderemos estar perto do momento em que deixam de existir discos assinados pela Cristina Branco e passam a existir discos assinados pela Eva Haussman?

(risos) Tipo Muhammad Ali?... Não!... Serei sempre eu. A Eva estará sempre lá. Para quem segue o que faço, vai ser óbvio que a Eva não é uma brincadeira.

    Mas não será perigoso levar isto demasiado a sério? Haver uma personagem de ficção que, subitamente, se apossa de nós?

Não, divirto-me imenso com isto. O condutor do Uber, esta manhã, perguntou-me “Eva?...” e eu “Claro!” O senhor do Nespresso também chega lá a casa e chama-me “menina Eva”. De repente, ela ganhou vida até nestas pequenas coisas. Mas a Eva é completamente eu. Só não fumo (e muito menos de boquilha) e jamais gastaria dinheiro em leilões.

    É curioso que, sendo algo tão profundamente auto-biográfico, isso surja através das palavras dos autores a quem te dirigiste... como foi possível isso?

Mostrando-lhes tudo aquilo que escrevi sobre a Eva e, mais do que isso, mostrando excertos do meu diário entre Janeiro de 2018 e Janeiro de 2019. Não a todos porque não tenho o mesmo nível de intimidade com todos eles, mas houve uma conversa com todos os que estão no disco. Recebi 23 canções de 12 autores e acabaram por ficar apenas 10. Queria exactamente a súmula do que acho que era importante dizer sobre a Eva. Sobre mim. Alguns autores com quem tenho uma relação mais próxima como o André Henriques, o Pedro Silva Martins ou a Francisca Cortesão que é um amor mais recente, senti que havia confiança suficiente para mostrar um lado muito íntimo que acho difícil mostrar aos outros. É preciso escolher as pessoas que não fazem juízos de valor. Há muitas referências a mim, por exemplo, no texto do Kalaf.

    Para além desse critério, houve outros para a escolha dos autores? São todos bastante diferentes...

Aproximam-se uns pelo género de música que fazem, outros pela geração a que pertencem... mas a ideia vem de dois discos atrás, o Menina, em que senti uma necessidade grande de trabalhar com pessoas mais jovens do que eu e que estão a construir de uma forma mais realista a história da música do nosso país.

    Mais realista?

Sim, são pessoas que observam a realidade, têm uma perspectiva quase rude das coisas. São desprendidos. É uma geração que está ligada a tudo o que são redes sociais, virada para fora, e isso dá-lhes uma perspectiva de vida completamente diferente da minha. E isso é muito interessante de trabalhar, sobretudo ao nível da música.

    Nunca te passou pela cabeça gravar um disco só com canções (pelo menos, textos) escritos por ti?

Eu escrevo muito e todos os dias. Preciso de escrever, é uma espécie de arrumação...

    Desfragmentação do disco...

Sim, é mesmo isso. Mas nunca o faço de uma forma mais poética. Mesmo quando escrevi o texto de "Contas de Multiplicar" não tive segurança suficiente para achar que tinha qualidade. O esforço que eu faço para escrever um texto como esse é gigantesco. Não tenho essa ambição. Não sei se, um dia, irá acontecer, se vou conseguir ser assim escorreita. Uma canção tem de bater imediatamente na outra pessoa.

    Por outro lado, a Cristina Branco que afirmava veementemente não ser fadista mas cantava fado, essa, desapareceu?

Não, eu continuo a cantar fado. Eu preciso de cantar fado. Até, se calhar, de uma forma mais depurada. Em concerto, gosto de pegar nos fados tradicionais e não os desconstruir, abordá-los exactamente como são. Gosto da forma como a minha voz chega aquele texto. Mas o fado, comigo, é uma coisa transversal, por onde passo e nunca fico muito tempo. Um dia, até pode dar-me na gana de fazer um disco só de fados... nunca nada está fechado.

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