25 February 2020

HISTÓRIA DE ATROCIDADES 


No início dos anos 70 do século passado, o Watford College of Art, vinte e tal quilómetros a Norte de Londres, era uma daquelas academias que tendiam a atrair alguns dos melhores e mais criativos cérebros da altura. Brian Eno deslocava-se até lá frequentemente para, juntamente com Peter Schmidt – ambos conceberiam o jogo de cartas “Oblique Stategies” (um desbloqueador aleatório de impasses criativos) e Schmidt desenharia algumas capas de álbuns de Eno –, propor ideias e projectos para “uma das escolas de educação artística mais evoluídas do planeta”. Na viagem de regresso a Londres, iam habitualmente de carro com outro professor do College, Hansjorg Mayer, que também dava boleia a um seu aluno, Colin Newman. Três décadas depois, em Rip It Up And Start Again: Postpunk 1978–1984, o estudo definitivo de Simon Reynolds sobre esse fertilíssimo período do rock, Newman (fundador dos Wire, em 1976, com Robert Gotobed, Graham Lewis e Bruce Gilbert) diria: “Na minha opinião, os humanos são intrinsecamente criativos mas existe um processo por meio do qual um indivíduo em particular se transforma num artista e pode afirmá-lo sem que isso pareça pretensioso. Se, em determinado momento, isso aconteceu comigo, foi durante aqueles percursos de automóvel. Mal punha o pé dentro do carro, deixava de ser apenas um pobre estudante para me tornar um amigo e igual – um artista a tagarelar sobre as suas ideias com outros artistas”.


Pink Flag (1977), Chairs Missing (1978) e 154 (1979) – o triplo disparo inicial que recortou o perfil dos Wire enquanto praticantes de um punk em transição para o pós-punk, porém, não de todo imune ao contágio do "art-rock", do psicadelismo ou de um ou outro maneirismo "prog", o que lhes valeria a alcunha de “Punk Floyd” – apresentava um programa de canções concisas e compactas mas abertas a diversos níveis de leitura, um universo musical rico e inteligente que, enquanto se aplicava a reduzir cada peça à sua essência (linhas, pontos, planos, espaços, qual Paul Klee traduzindo a Teoria da Forma para o idioma punk), não desistia, ao mesmo tempo, de fazer explodir os limites do género. “Inicialmente, Bruce e eu transportámos uma forma de pensar das Belas Artes para a música: método e design”, explicava Newman, “Era um processo de eliminação, uma lista de todas as coisas que não iríamos fazer. Toda a gordura, toda a divagação, desapareceram. Tudo era drasticamente editado. As canções ficaram reduzidas a um minuto e meio”. Mais do que emanações subjectivas da alma, cada esboço era matéria-prima sonora e verbal destinada a ser esculpida, assente em pressupostos inspirados pela escola-Eno (como escrever o texto de uma canção com apenas 100 sílabas? como reescrever "Johnny B. Goode" usando um único acorde? como estruturar uma música assente num sistema de correspondências entre acordes e os nomes das estações de comboios da linha Londres-Watford?), um micro-manifesto minimalista repleto de sentido(s). 


Com duas prolongadas interrupções na trajectória (entre 1979 e 1987 e de 1991 a 2003, pausas aproveitadas para projectos individuais e de colaboração como Dome, Duet Emmo, Cupol, Githead, Immersion, A.C. Marias), durante os 17 álbuns que compõem a totalidade da discografia dos Wire, uma atitude manteve-se constante: “Respeitamos o nosso passado – de facto, temos imenso orgulho nele – mas não estamos dispostos a que nos capture nem desejamos viver à custa dele. Sempre pretendemos fazer música nova. A nossa política foi sempre a de nunca nos repetirmos. Aqui e ali, isso poderá ter tido a consequência de deitarmos fora o bebé com a água do banho mas preferimos olhar em frente e não para trás”, diz Colin Newman à "Record Collector", agora que é publicado Mind Hive – o 17º registo “que ficará como memória de que não é possível atribuir um preço à nossa integridade artística e moral”–, recordando, igualmente, aquilo que já em 1995 declarara: “De todas as vezes que nos aproximámos do sucesso comercial, voltámos a mergulhar, de cabeça, na obscuridade”


E, na verdade, o que podemos escutar em Mind Hive é uma banda que insiste em não limar arestas na música que cria, um rock robusto, esquinado e tenso de guitarras corrosivas, batidas metronómicas, sintetizadores geométricos e baixo sinuoso, entregue à missão de captar instantâneos glaciais da inquietante colmeia mental contemporânea (“The collective hive-mind, algorithmically scanning, defending exploration and language hair extensions”), dos mecanismos orwellianos de controlo e vigilância (“People praying, disappearing, CC cameras, knives and hammers, people sleeping, broken, beaten, people lying, homeless, dying”) sobre um mundo para o qual a designação de distópico é já insuficiente (“It’s history, rabid dogs tearing skeletons into piles of bones, nothing new about that, too little of this, not enough of that, nothing new about that, they play it all for you, they explain it all to you, telling you to be like them”) e que não é senão ainda outra etapa na negra e interminável história de atrocidades do sapiens (“The men are lined up, then shot into graves, the children are murdered, the women enslaved, shadow of the future, shadow of the past”). Trinta e cinco minutos de uma provocatória sequência não narrativa na qual cada um dos 9 capítulos, mais do que uma canção fechada e acabada, é uma "password" para o acesso a um universo cruel e severo – paradoxalmente tornado quase sedutor – pronto para ser decifrado e explorado. Não é sintoma de paranóia que, num cenário implacavelmente dividido e fracturado, para onde quer que olhos e ouvidos se dirijam, pareçam espreitar perigos e ameaças. Mas também não é provável que alegar autocriticamente um momento de amnésia e desatenção – “Spy the Russians, brushing scandals under oligarchy rugs, I can’t quite remember, when it went wrong, someone was humming a popular song” – possa funcionar como atenuante.

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