16 October 2019

PRECURSORES 

Alphonse Allais - Marcha Fúnebre para as Exéquias de um Grande Homem Surdo

À excepção, talvez, do Big Bang, do nada, nada surge. É por isso que, mesmo algumas atitudes aparentemente radicais e vanguardistas, se devidamente escrutinadas, revelarão ter antecedentes que as anteciparam ou lhes pavimentaram o caminho. A propósito de STUM433 – a caixa de 5 LP com 58 “versões” dos 4’33” de silêncio (1952), de John Cage, que, no próximo dia 25, será publicada a propósito dos 40 anos da Mute Records –, já aqui foi apontada a muito pouco cageana tentativa de procurar capturar aquilo que, por definição, não é capturável. Mas valerá também a pena darmo-nos conta de como esse silencioso separador de águas de Cage não teve lugar em território propriamente virgem. Entre, então, em cena Erwin Schulhoff (1894 – 1942), compositor e pianista checo, discípulo de Dvořák e Debussy, comunista e dadaísta, que morreria no campo de concentração nazi de Wülzburg, na Baviera. 

Erwin Schulhoff : In Futurum, Part III from Fünf Pittoresken (Gerard Bouwhuis)

Adepto do jazz e de uma ideia da música como arte revolucionária por excelência que “deveria escapar ao imperialismo da tonalidade e do ritmo para se elevar a uma extática mudança positiva”, entre as suas obras (que incluiram uma Sonata Erótica para voz feminina solista – aliás, “Solo-Muttertrompete" –, sonoro orgasmo em partitura minuciosamente notada, e uma versão musical do Manifesto Comunista), encontram-se as Fünf Pittoresken, para piano (1919), cuja terceira parte, "In Futurum", consiste de uma partitura inteiramente composta de pausas, ritmicamente intrincada e, claro, ... totalmente silenciosa. Não é, porém, impossível (embora não esteja registado) que Schulhoff se tenha inspirado em Alphonse Allais (1854 – 1905), escritor e humorista francês, cultor da holorima, participante do Salão das Artes Incoerentes, amigo de Erik Satie e pioneiro da pintura monocromática – e na sua Marcha Fúnebre para as Exéquias de um Grande Homem Surdo (1897), uma peça de 24 compassos em branco. É bem capaz de ter sido nestes dois precursores que o autor de um cartoon – descoberto pelo compositor e crítico musical do “Village Voice”, Kyle Gann – publicado em 1932, na revista para pianistas, “The Etude”, foi furtar a ideia de representar um jovem aluno de piano preguiçoso que, quando a mãe o repreende por não o ouvir a tocar, se defende, alegando estar a compor uma música que, a seguir, irá estudar. Meia hora mais tarde, ela, agastada, volta a dizer-lhe que continua a não o ouvir, e, compenetradíssimo, o Willie mostra-lhe a obra concluída: “Song of The Sphynx”, seis compassos integralmente preenchidos com pausas. O mais curioso, contudo, é que o autor do cartoon se chamava... Hy Cage.

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