22 April 2019

SONHOS VISCERAIS 


Desmond Morris, zoólogo, etólogo, escritor e, aos 91 anos, um dos últimos elos vivos com a primeira geração de surrealistas, publicou no ano passado The Lives Of The Surrealists no qual, contra a habitual classificação dos membros desse movimento enquanto figurativos e abstractos, veristas e absolutos ou oníricos e "free-form", propõe cinco categorias diferentes. A segunda é o “surrealismo atmosférico”: “O artista apresenta uma composição realística mas com uma intensidade de tal modo estranha que as cenas representadas assumem uma qualidade onírica. Exemplo: Paul Delvaux”. Associando a isso a “regra básica da filosofia surrealista” que, à frente, enuncia – “Trabalhar a partir do inconsciente, não analisar, não planear, não usar a razão, não aspirar ao equlíbrio e à beleza. Em vez disso, permitir que os pensamentos mais obscuros e irracionais habitem as vossas telas. Deixar que os quadros se pintem a si mesmos enquanto os observam” –, mais palavra, menos vírgula, poderia, facilmente, estar a caracterizar a obra de David Lynch. Ou, para o que agora importa, a de uma das suas criaturas, Chrysta Bell. 


Num álbum (This Train, 2011), um EP (Somewhere In The Nowhere, 2016), a participação na banda sonora de Inland Empire (2006) e na oferta de encarnação da personagem da agente do FBI, Tammy Preston, em Twin Peaks: The Return (2017), Lynch não apenas co-assinou um muito particular universo de canções e actuou como bússola estética de Chrysta Bell mas seria também o trampolim para um percurso autónomo. A produção do omnipresente John Parish asseguraria optimamente a transição no mais que perfeito We Dissolve (2017) e, no ano passado, um EP (Chrysta Bell) deixava adivinhar o que é, agora, o quarto álbum a solo, Feels Like Love: a torre de controlo era já ocupada por Christopher Smart (co-autor, baixista e produtor) e aí se incluiam três peças (recuperadas neste CD) que davam o tom para o futuro – "Blue Rose" (Julie London em processo de dissolução sumptuosamente melódico), "Everest" ("über-torch song" em estado de graça) e "52Hz" (a metáfora da baleia que comunica numa frequência indecifrável). As seis que completam o disco, do "noir" translúcido de "Time Never Dies" e "Vanish" à narcótica "Red Angel", não são senão a exuberante confirmação do desejo de Chrysta Bell: “Trabalhar ainda a matéria dos sonhos mas de sonhos mais viscerais. Não domestiquei ainda o animal selvagem mas tornei-me uma testemunha mais próxima da sua verdadeira natureza”.

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