15 August 2018

NOTAS E MENSAGENS 


“Toda a música de que gostamos vive em permanente equilíbrio entre o sério e o absurdo, o experimental e o acessível, o humor e a pompa ostensiva. Não me parece que fôssemos capazes de criar um álbum óbvio e linear mesmo que desejássemos fazê-lo. Jogar com a ambiguidade e obscurecer as fronteiras é aquilo que nos dá maior prazer”, diz Alice Merida Richards, metade dos Virginia Wing. Convém saber que “a música de que gostamos” é algo que, mais ou menos confessadamente, se situa entre os Broadcast, Stereolab, Pram, Laurie Anderson, Robert Ashley, Holger Czukay, Talking Heads e as “possible musics” do imaginário Fourth World de Jon Hassell. Será útil ter também presente que, após algumas experiências desconfortáveis através das quais Alice se apercebeu de quão constrangedora pode ser a posição de única mulher em palco perante um público neanderthal, os Virginia Wing passaram a actuar sobre uma projecção em letras cor-de-rosa da palavra de ordem “End rape culture!”. Não deverá ser, então, demasiado arriscado imaginar que, dissimulado como refrão da "chinoiserie" repetitivamente "naïve", "Relativity", “I want to know every thought, every cause and emotion, I want to know where it ends and begins” é capaz de conter todo o programa de Ecstatic Arrow, quarto álbum de Alice e Sam Pillay. 



Não que, na realidade, deva falar-se de “programa”: nada é explícito nem panfletário, antes uma colecção quase avulsa de notas e mensagens disponível para se deixar decifrar. O código? É, talvez, possível encontrá-lo em "The Second Shift”: “I know the key, it’s written in my body, don’t ask me for advice, I’ll give it to you every time, open up and let the forest fire destroy everything in sight”. Mas isso terá de achar uma forma de fazer sentido com “Call and repeat, do you find it absurd? To expect a response when it's your turn to talk”, de "Glorious Idea", cantilena de roda infantil para voz robótica sobre lego sonoro electrónico. Ou com o modo como, em "Eight Hours Don’t Make a Day" (“I made plans for the weekend, I made plans for the future “) e "A Sister" (“Each way we can speak of pain, we make it less, at least more contained”), o espectro de Nico se apossa da voz de Merida Richards e, aqui e ali, o sax tenor de Christopher Duffin, desarruma a mais que perfeita geometria sonora electro-acústica desta peculiar "muzak" subaquática que nos segreda “Un-cancel the future and welcome July (…) say your blessings now and be glad you have arrived”.

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