GÉNERO
"She’s Funny That Way" é uma canção de Neil Moret e Richard Whiting, composta para o filme Gems Of M-G-M (1929) e aí interpretada por Marion Harris, uma das primeiras cantoras brancas a cantar jazz e blues. Moret, Whiting e Harris eram heterossexuais. "My Girl", primeiro grande êxito dos Temptations (1964), foi escrita por Smokey Robinson e Ronald White (elementos dos Miracles) e inspirada por Claudette Rogers Robinson, mulher de Smokey."Then He Kissed Me" (1963), um dos maiores sucessos das Crystals, emblemático "girl group" da década de 60, teve como autores Phil Spector, Ellie Greenwich e Jeff Barry, norte-americanos heterossexuais, de ascendência judaica e dois deles – Spector e Greenwich – com origem russa. "I Need A Man To Love", publicada no álbum Cheap Thrills (1968), dos Big Brother & The Holding Company, tinha assinatura do guitarrista Sam Andrew, heterossexual, e de Janis Joplin, bissexual. Quinta faixa de A Hard Day’s Night (1964), "And I Love Her" deve-se, essencialmente, a Paul McCartney, heterosexual, tendo John Lennon – segundo a viúva, Yoko Ono, tendencialmente bissexual – contribuído com a “ponte”. "Mad About The Boy" integrava a "revue" Words And Music (1932) e era da autoria de Noël Coward, homossexual.
Estão as seis reunidas, agora, no EP Universal Love: Wedding Songs Reimagined mas todas submetidas a um subtil desvio de género: Bob Dylan canta "He’s Funny That Way"; Kele Okereke (cantor dos Bloc Party), "My Guy"; St. Vincent, "Then She Kissed Me"; Kesha, "I Need a Woman To Love"; Ben Gibbard, (de Death Cab For Cutie), "And I Love Him"; e Valerie June, "Mad About The Girl". O objectivo, fundamentalmente político, é a criação de um reportório musical para casamentos entre pessoas do mesmo sexo – e as versões de Dylan e St. Vincent são, sem dúvida, valiosas – mas, no contexto das febris polémicas identitárias em curso, deverá ser encarado como um magnífico exercício de "détournement" (XIX) de raiz Situacionista ou enquanto reprovável acto de “apropriação cultural” que confunde orientações sexuais de autores e intérpretes e legitima a captura de elementos da cultura de uma comunidade por outra? Tardará muito até podermos ler que já bastava haver grupos de raparigas negras a cantar música de americanos brancos descendentes de judeus russos, para termos ainda que escutar Bob Dylan em modo gay? Pelo menos, o eterno debate da escrita feminina vs escrita masculina parece resolvido: mudar o género de pronomes, substantivos e adjectivos é o suficiente.
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