ISRAEL, OS MEDIA E SEXO ORAL
Há muitas luas, escrevendo sobre um "songwriter" estimável mas que a História só em rodapé registará, ousei compará-lo (favoravelmente) ao Bob Dylan de então. E, para eterna vergonha e infinda penitência futura, afirmava, convicto: “Não consegue entender-se muito bem por que motivo uma geração inteira, há anos, persiste em convencer-se e em tentar convencer as seguintes de que Bob Dylan, do ponto de vista criativo, não se encontra definitivamente empalhado”. É verdade que estava ainda muito próxima a idade das trevas-"born again" do futuro Nobel da Literatura que, agora, no 13º volume da "Bootleg Series", a Columbia pretende reabilitar. Fraca atenuante, porém, face ao arrasador desmentido que toda a obra imediatamente posterior de Dylan se encarregaria de fazer. Funcionaria, contudo, no longo prazo, como vacina (relativamente) eficaz contra juízos demasiado apressados. Mas, no que diz respeito ao Morrissey actual, é bem provável que nem um reforço da primeira dose evitará que lhe supliquemos que pare de emporcalhar a memória dos Smiths e, sejamos justos, de uma parcela importante da sua discografia a solo.
O impulso incontrolável para o disparate é, nele, lendário. Se, em matéria de panfletarismo vegan, apontar as malas de Beyoncé como causa para o risco de extinção do rinoceronte poderá ser só tolice, acusar o povo chinês de ser “uma sub-espécie” em virtude dos seus hábitos alimentares ou relativizar o terrível massacre de 2011, na Noruega, perante “o que acontece, todos dias, nos McDonald's”, já é, francamente, mais grave. E verdadeiramente indesculpáveis são declarações tais que “Estou convencido que brancos e negros nunca se darão bem nem gostarão uns dos outros” ou “Quanto maior é a imigração, mais rapidamente a identidade britânica desaparece”. Tudo isto desajeitadamente contrabalançado por indignados protestos – “Abomino o racismo, a opressão e crueldade de todos os tipos” - e objectivamente contrariado pela muito especial relação de mútua paixão com a comunidade “latina” de Los Angeles, à qual dedicou a canção "Mexico" (“In Mexico I went for a walk to inhale the tranquil, cool, lover's air, but I could sense the hate, from the Lone Star state… it seems if you're rich and you're white, you'll be alright”) e a quem, durante a campanha presidencial norte-americana, incitava a não votar em Donald Trump.
Aparentemente, Morrissey é incapaz de viver sem isto: agora mesmo, num concerto de ante-estreia na BBC6 de Low In High School, pareceu-lhe apropriado insinuar, totalmente a despropósito, o apoio a Anne Marie Waters, candidata ferozmente anti-islâmica à direcção do já desmedidamente xenófobo UKIP. Realmente desastroso é que se, embora com imensa dificuldade, ainda ia sendo possível separar os dislates-“bigmouth” da obra gravada, desta vez, eles invadem e apoucam as canções de forma irremediável. Num álbum em que dir-se-ia existirem apenas três temas – Israel, os media e sexo oral -, as hostilidades abrem-se em modo de "glam" artriticamente pesadíssimo com a portentosa proclamação... err... trumpiana, “Teach your kids to recognize and to despise all the propaganda filtered down by the dead echelons mainstream media”. Um pouco mais adiante, naquilo que até poderia ser uma sedutora variação de Debord/Vaneigem sobre O Elogio da Preguiça” (“Spent the day in bed, very happy I did, yes I spent the day in bed, as the workers stay enslaved (...) Oh time, do as I wish, time, do as I wish (…) And no bus, no boss, no rain, no train”), de súbito, regressa a obsessão: “Stop watching the news! Because the news contrives to frighten you, to make you feel small and alone, to make you feel that your mind isn't your own”. O que, convenhamos, combina mal com a rudimentar retórica tablóide da morosa "Israel" (“they who reign abuse upon you, they are jealous of you”), tema que, no tango de casino de "The Girl From Tel-Aviv Who Wouldn't Kneel", desenvolve com uma argúcia política de taxista (“What do you think all these conflicts are for? It's just because the land weeps oil”).
Em memória do saudoso "Margaret On The Guillotine", há gestos de simpatia – o “Axe the monarchy” da imagem da capa, a paráfrase anti-militarista sobre "Universal Soldier”, de Buffy Sainte-Marie, em "I Bury The Living" (“You can’t blame me, I'm just an innocent soldier, (…) Give me an order! I'll blow up a border, give me an order and I'll blow up your daughter”) – mas, de um modo geral, com dois ou três momentos de contacto oro-genital para criar o clima adequado, tudo se resume a um serôdio "flower power" de Twitter: “They say presidents come, presidents go, but all the young people they must fall in love”.
Para lavar os ouvidos, nada melhor do que optar pela reedição de The Queen is Dead (1986), estojo de algumas das máximas preciosidades Morrissey/Marr ("The Boy With The Thorn In His Side", "Bigmouth Strikes Again", "There’s A Light That Never Goes Out"…). Com todos os bónus, raridades e "lives" de rigor, Alain Delon baleado, na capa, título subtraído a Hubert Selby Jr., e video de 13 minutos de Derek Jarman. Mas, sobretudo, com Morrissey ainda vivo.
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