À PROCURA DE CANÇÕES
Libellus vere aureus, nec minus salutaris quam festivus, de optimo rei publicae statu deque nova insula Utopia (“Um pequeno livro verdadeiramente dourado, não menos benéfico que divertido, sobre o melhor estado de uma república e a nova ilha Utopia"), – simplificando, a Utopia (1516) – seria o relato feito a Thomas More pelo imaginário navegador português, Rafael Hitlodeu, no qual ele descreve uma também imaginária sociedade ideal que teria descoberto numa ilha do Novo Mundo. Fundamentalmente igualitária e abominando a propriedade privada, andava, porém, longe da perfeição: cada família possuía dois escravos; as mulheres deviam confessar os seus pecados aos maridos mensalmente; a deslocação dentro da ilha só era permitida com autorização superior sob pena de escravatura, castigo igualmente aplicado em caso de adultério; e todas as religiões eram aceites mas os ateus eram mal vistos e persuadidos a corrigir o seu “erro”.
Quinhentos anos depois, pareceu a Björk ser altura de imaginar uma nova Utopia: “Se, alguma vez, ser optimista foi urgente, agora é-o mais do que nunca. Em vez de resmungarmos e nos zangarmos, há que apresentar sugestões acerca de como deverá ser o mundo onde, no futuro desejamos viver”, desabafou ao “New York Times”. E, à “Pitchfork”, acrescentou: “Nestes tempos de Trump, é necessário ter um plano, um manifesto, uma alternativa. É uma questão de vida ou de morte para a nossa espécie. Como música, posso sugerir um ângulo poético: após tantas tragédias, há que inventar, tricotar ou bordar um novo mundo”. E, candidamente, descreve a sua Utopia (e respectivo álbum em que a apresenta): “Uma cidade nas núvens, liberta da gravidade, flutuando no ar”. Ou – porque, confessa, tem andado a ler obras de ficção-científica de autoras lésbicas negras –, “uma fuga organizada para uma ilha onde só há mulheres e crianças, toda a gente anda nua e toca flauta, a violência é desconhecida, e há pássaros e plantas jamais vistos”.
Oscar Wilde estava carregado de razão quando escreveu que “Um mapa do mundo que não inclua a Utopia não merece sequer ser olhado de relance”. O problema com a Utopia de Björk é que, mesmo descontando a imensa e embaraçosa ingenuidade, é coisa perigosamente próxima dos piores pesadelos "hippie-new-age", em reprovável promiscuidade com tiradas de "coach" de auto-ajuda. O plano inclinado começara já em Vulnicura (2015) – relato psicoticamente cronológico da separação de Matthew Barney – mas, se esse foi o álbum das trevas, este pretenderia ser o da luz e da redenção. No entanto (de novo com Arca/Alejandro Ghersi enquanto co-produtor e quase co-autor), o que se oferece para escutar é uma sucessão desnecessariamente longa de texturas, efeitos, sobreposições de vozes e timbres desesperadamente à procura de canções (Björk chama-lhe “uma rebelião optimista contra a melodia narrativa normal”), uma esgotante jornada na qual, de baixo de cada pedra saltam passarinhos, flautas, harpas e coros apropriadamente “paradisíacos”, e não se descobre um único texto que não soe pateticamente ridículo.
Ele há os tântrico-esotéricos (“My sexual DNA, X-rays of my Kama Sutras, summons different bodies, compares spines and buttocks and back of necks” ou “Then my body memory kicks in, all bosoms and embraces, oral, anal entrances, enjoy the satisfaction if the other is growing”), os feministas-matriarcais (“All trapped in legal harness, Kafkaesque farce like patriarchy” e “Watch me form new nests, weave a matriarchal dome, build a musical scaffolding”) e os místico-pagãos (“As you narrate your own heart tale, you thread souls into one beam, the love you gave and have been given weave into your own dream, I trust my cells to rearchive my love historic stream (…) Tied ribbons on my ankles for you, drew orchids on my thighs for you, my spine curved erotically, we're finally vulnerable”). Na capa, Björk mostra um implante vulvar na testa, orifícios de flauta no pescoço e trompas de Falópio no lugar das sobrancelhas. A distopia anatómica?
1 comment:
A utopia é como a água benta, cada um toma a que quiser.
O resto são tretas.
Como esta da Bjork que, até musicalmente,não ata nem desata.
Vira Milho
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