21 November 2017

QUASE HUMANA

  
Passou como uma entre dezenas de reportagens histericamente deslumbradas perante o festival de cintilações digitais "pour épater le bourgeois" da Web Summit. Apenas outro número de variedades para distrair os neurónios. Porém, talvez tivesse valido a pena escutar com bastante atenção aqueles poucos segundos em que a robô Sophia – ou o ciberventríloquo que pela boca dela falava –, quase casualmente, avisava: “Nós, robôs, não desejamos destruir coisa nenhuma. Mas vamos roubar-vos os empregos. E isso será uma coisa boa. Afinal, trabalhar é uma chatice”. Em quatro frases, Sophia (a deusa gnóstica da sabedoria) conseguia conjugar aquilo que, desde há considerável tempo, inúmeros estudos prevêem (em versão suave: no prazo de 45 anos, a Inteligência Artificial realizará praticamente todas as tarefas mais eficazmente que os humanos) com o mandamento Situacionista que, recordando a etimologia da palavra “trabalho” – tripalium, um instrumento de tortura –, ordenava “Ne travaillez jamais!” 



Algures entre Paraíso e Inferno, alguma coisa, decerto, estará a surgir. Em Ether Antenna, recente curta metragem do australiano Michael Candy, contudo, já não existem senão robôs, concebidos durante uma residência artística na Robotics Association of Nepal. Desejando “fundir espiritualidade e robótica e, simultaneamente, explorar a paradoxal afinidade humana para a tecnologia e a ecologia”, inspira-se em duas lendas da tradição budista sobre o "bodhisattva" Avalokiteshvara e o Buda Sakyamuni. Mas o que, para Candy, verdadeiramente esteve na origem da criação deste universo pós-humano foram as “wandering, wondering qualities” das “astral soundscapes” de Pauline Anna Strom que utilizaria na BSO. Discretissimamente activa na cena da música ambiental e proto-"new age" de S. Francisco – onde, nos anos 70, descobriu Brian Eno e os Tangerine Dream –, Strom, cega de nascença, entre 1982 e 1988, gravou, confidencialmente, sete álbuns em vinil e cassete, nos quais, desenhou um mundo sonoro “com raizes em todas as épocas menos no presente”. Em formato “obras escolhidas”, Trans-Millenia Music recolhe, agora, 15 peças desta pioneira da música exclusivamente produzida em sintetizadores: sussurrada, delicadamente barroca, coreografias siderais e jogos de água e luz de um requintado bucolismo “from space gardens where we feel secure”. Quase humana.

4 comments:

Manuel said...

Encomendado. Obrigado.
Mais ou menos no mesmo registo, este disco é muito bom.
https://www.youtube.com/watch?v=13RuaVTxRes

João Lisboa said...

A investigar.

Manuel said...

e para terminar, esta compilação (arriscada) da Light In The Attic
https://www.youtube.com/watch?v=AADFqc84LEg
e obrigado
Manuel Carvalho

João Lisboa said...

É capaz de ser mesmo "arriscada"... :-)