Vamos conhecendo Laura Marling, literalmente, pela pele. Ou pelo que ela vai inscrevendo na pele. Em 2013, por altura da publicação de Once I Was An Eagle, ficámos a saber que, no pulso direito, tem tatuado o lema dos baronetes de Marling – cujo primeiro titular foi, desde 1882, Sir Samuel Marling, industrial, filantropo e político liberal –, nulli praeda sumus (“não somos presa de ninguém”). Agora, no momento em que surge Semper Femina, descobrimos que, aos 21 anos, tatuou discretamente o título do álbum (citação deliberada e ironicamente truncada da Eneida, de Virgílio: varium et mutabile semper femina (”a mulher sempre vária e volúvel”) na elegantíssima coxa esquerda. E, acessoriamente, o brasão da casa de Marling no outro pulso. Não é caso para alarme: ela não é, de todo, uma versão contemporânea de O Homem Ilustrado, de Ray Bradbury. Muito mais facilmente esta autoconfessada “mistura estranha de completa neurótica e espantosa procrastinadora nada perfeccionista”, loira e pálida, encarnaria uma qualquer heroína de Jane Austen. Porém, capaz de, ao mesmo tempo, afirmar: “Não é possível conceber tragédias a partir das minhas personagens. A nossa cultura adora tragédias femininas. Por isso, agora, concentro-me em reescrever essa ideia da mulher trágica”.
Semper Femina é, então, uma detalhada e preciosa trajectória quase folk – isto é, mais próxima do espírito “de câmara” de Once I Was An Eagle do que do anterior Short Movie –, entre evocações de L’Origine du Monde, de Courbet (“A origem do mundo ser aquela imagem muito gráfica do sexo de uma mulher sempre me pareceu uma coisa poderosíssima”), da Casa de Bonecas, de Henrik Ibsen, de Leonard Cohen (“Um dos raros românticos realistas, um género a que fui buscar inspiração para a minha ainda curta vida”), da surrealista Leonora Carrington, ou – nos dois videoclips por ela dirigidos, para "Soothing" e "Next Time" –, de Roy Andersson, realizador de Um Pombo Pousou Num Ramo a Reflectir Sobre a Existência, único filme autenticamente genial que (até agora) o século XXI produziu. Não temamos perder-nos nela. É a própria Laura Marling que o autoriza: “O meu desejo de ser mal entendida é permanente. Posso parecer uma hippie tresloucada mas acredito que a escrita de canções é uma arte obscura, uma forma de encantamento. É impossível explicá-la”.
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