A VIDA EM DUAS HORAS E MEIA
50 canções. Uma por (e sobre) cada ano de vida, iniciada em 1965, até ao meio século comemorado a 19 de Fevereiro de há dois anos, mas só agora amplamente celebrado através da publicação de 50 Song Memoir. Foi o desafio autobiográfico lançado pelo presidente da Nonesuch Records a Stephin Merritt – ele dos Magnetic Fields, Gothic Archies, Future Bible Heroes e 6ths e “a pessoa menos autobiográfica que alguma vez conhecerão” – que, surpreendentemente, o aceitou. E, retomando a veia das obras de grande fôlego, ultrapassou o inesgotável triplo de 1999, 69 Love Songs, convertendo as suas memórias num portentoso quíntuplo álbum.
Decidiu-se a deitar mãos a este projecto porque o presidente da Nonesuch, há dois anos, lho sugeriu como forma de comemorar o seu 50º aniversário. Por iniciativa sua, nunca o faria?
Não, se não me tivessem desafiado para o fazer nunca me teria passado pela cabeça a ideia de escrever 50 canções acerca de mim.
No entanto, desde 69 Love Songs, i, Songs From A-Z ou o livro que publicou com Roz Chast, 101 Two-Letter Words...
... A-Z foi uma forma de estruturar um concerto, 26 canções, uma para cada letra do alfabeto. Um espectáculo, não um álbum.
... A-Z foi uma forma de estruturar um concerto, 26 canções, uma para cada letra do alfabeto. Um espectáculo, não um álbum.
Mas essa forma de organização temática/conceptual de discos, concertos e livros parece ser algo muito do seu agrado...
Não é do agrado de toda a gente?... Se calhar, então, vou chamar ao próximo álbum Another Record... (risos) No fundo, é como o Frank Sinatra intitular um álbum Songs For Swingin' Lovers! Ele tinha uma banda de swing e gravou um álbum de canções de amor. Daí ter-lhe chamado Songs For Swingin' Lovers!, nada de muito complicado. De um modo geral, gosto que o título descreva aquilo que o álbum contém. Por exemplo, o título Distortion era uma espécie de alerta para que, se não gostassem de música com distorção, não iriam apreciar aquele disco. Ninguém teria motivo para reclamar: estava bem visível na capa.
50 Song Memoir foi-lhe mais fácil ou mais difícil de criar do que 69 Love Songs? Sempre foram menos 19 canções...
Na verdade, foi mais difícil porque tive de me assegurar de que, sendo autobiográfico, tudo aquilo que dizia era verdade. O que torna muito mais complicado encontrar as rimas...
Mas também já confessou que “uma autobiografia não tem de ser sinónímo de verdade”...
Se estivesse num tribunal e tivesse de contar a história da minha vida em duas horas e meia seria muito diferente daquela que conto através das canções. Seriam ambas verdadeiras mas editadas de modo completamente diferente. Num tribunal, nunca falaria da minha vida amorosa (a não ser que fosse obrigado a fazê-lo) mas, num álbum, isso pode perfeitamente constar da minha biografia.
Quer isso dizer que, quando, em "They’re Killing Children Over There", conta que foi a um concerto dos Jefferson Airplane, em 1970, devemos encarar isso como um ‘facto alternativo’, uma liberdade poética ou aconteceu mesmo? Nessa altura, tinha cinco anos...
É verdade, fui ver os Jefferson Airplane com a minha mãe! Ela tinha o Surrealistic Pillow [segundo álbum dos Jefferson Airplane de 1967] que eu adorava. Por isso, aos cinco anos, eu já era um fã da banda quando fomos vê-los.
Proavelmente, eles nem sonhavam que tinham fãs com cinco anos...
Havia imensas crianças em Woodstock!... Mas não foi em Woodstock que os vimos. Tentámos ir a Woodstock mas foi impossível, o trânsito estava um pesadelo! Conto isso, aliás, na canção antes dessa, "Judy Garland".
Nos espectáculos em que apresentou este álbum, surge como uma personagem no interior do cenário criado por José Zayas – uma espécie de casa de bonecas recheada de objectos fortemente simbólicos que foi coleccionando ao longo dos anos – que vai, canção a canção, ano a ano, contando a história da sua vida...
Claro que me vejo como uma personagem. É uma versão editada de mim próprio que apresento. Mas não é mais personagem do que aquela que poderia surgir numa festa onde fosse explicar quem sou, numa versão que as pessoas poderiam reconhecer. Quando, em 2010, fizeram um documentário sobre mim, Strange Powers, fiquei com a ideia de que mostrava uma visão extremamente selectiva da minha vida, de acordo com o ponto de vista das realizadoras [Kerthy Fix e Gail O’Hara]. Não mencionaram o facto de eu ter escrito três musicais durante o período em que filmavam porque não tinham sido autorizadas a filmar os actores. Por isso, essa parte da minha vida não surgiu no documentário. Na altura, isso deixou-me um bocadinho irritado mas, agora, compreendo que qualquer biografia será sempre, inevitavelmente, selectiva, em função do meio que é utilizado e da conveniência do biógrafo.
Mesmo quando se trata de uma autobiografia?
Sim. No documentário, há muitas sequências de outras pessoas que fazem depoimentos acerca de mim. Numa autobiografia – pelo menos, em todas as que li –, não é habitual ocorrer ao autor a ideia de pedir testemunhos sobre si mesmo. E, neste álbum, eu também não entrevistei ninguém para falar sobre mim.
É verdade que, para este disco, foi repescar canções com mais de 30 anos e outras que escreveu quando ainda era adolescente?
Sim, algumas. Cerca de metade de "At The Pyramid", por exemplo, fui recuperar a uma gravação dos anos 80 que descobri. Ou "Ethan Frome" que data da época que descreve [1989]. Assim de repente, são aquelas de que me recordo.
Pode ser só ainda uma primeira impressão mas, ao escutar 50 Song Memoir, tive a sensação de que tinha convocado, em simultâneo, para a gravação todos os seus alter-egos: Magnetic Fields, Gothic Archies, Future Bible Heroes, 6ths...
Não é que, conscientemente, eu tenho pretendido fazer isso mas, se calhar, quem sabe?... Terei, de certeza, de voltar a escutá-lo com essa ideia presente para poder chegar a uma opinião mais segura.
Voltando ainda a "They’re Killing Children", a determinado passo diz: “Now that everyone is fat and complacent, I haven't heard a protest in years”. Quer parecer-lhe que, agora, após a eleição para a presidência do Agent Orange, tudo continuará a ser assim?
O que pretendi dizer é que há muitos anos não se escutam canções de protesto. Acerca das guerras em que nos envolvemos. Na semana passada, um raide aéreo no Yemen aprovado por Trump matou uma miúda de 8 anos cujo irmão de 16 anos tinha também sido morto, meses antes, noutro raide aprovado por Obama. Continuam a ser mortas crianças naquela guerra e não estou à espera que deixem de o fazer tão cedo. Mas já não há uns Jefferson Airplane para escreverem canções sobre isso. Existe protesto no hip hop mas nunca me dei conta que falassem sobre vítimas infantis de raides aéreos.
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