14 February 2017

MOEDA DE QUATRO FACES


Há elogios que se colam à pele e que, por muito que a pele mude, nunca se apagam. Quando, em 2007, por altura da publicação do primeiro álbum de Jesca Hoop, Kismet, Tom Waits – de cujos três filhos ela havia sido "nanny" durante cinco anos – a abençoou descrevendo-a como “uma moeda de quatro faces, uma alma antiga, uma pérola negra, uma bruxa boa ou uma lua vermelha; a música dela é como nadar, à noite, num lago”, porventura, não imaginava que, até hoje, raras seriam as linhas escritas sobre Jesca nas quais isso não fosse recordado (prova adicional: este mesmo texto). Por algum motivo "kismet" é a palavra que, em turco, urdu, hindi e árabe, significa “fado” ou “destino”... A verdade é que a metafórica caracterização de Waits não poderia ter sido mais apropriada. As canções da foragida de uma família mormon (por uma questão de “desintoxicação”) que, à teologia sci-fi, preferiu um “raccoon lifetsyle” – viver à sombra de árvores, em tendas, cabanas de adobe e num aviário abandonado –, pelo meio de biscates enquanto trabalhadora agrícola, da construção civil e vigilante florestal, eram exactamente do género que, de certeza, faria Tom Waits salivar: uma estética primitivista de ferro-velho em felicíssimo matrimónio com um design rústico de bordadeira artesanal celebrado no interior de uma mente singular. 



Quase logo a seguir, não só mudou de pele como de localização geográfica: transplantada da Califórnia para Manchester, os dois álbuns seguintes – Hunting My Dress (2009) e The House That Jack Built (2012) –, sem deixarem de ser belíssimos espécimes musicais e pretexto para uma notável colecção de videoclips, secavam um pouco a veia experimental a favor de uma concepção sonora de acesso menos cifrado. The Complete Kismet Acoustic (2013) e Undress (2014) reviam a matéria anterior e, no ano passado, Love Letter For Fire (com Sam Beam/Iron & Wine) aproximava-se perigosamente de uma sonolenta atmosfera-fogo-de-campo. É, pois, uma excelente notícia darmo-nos conta de que, em Memories Are Now, a “moeda de quatro faces” brilha intensamente de novo. E, desta vez, de um modo particularmente waitsiano: uma espécie de folk sofisticadamente rudimentar, ora acústica, ora asperamente eléctrica, despojada mas imprevisível, só com o presente em mira: “I was not there, I won’t be there, I’m only here, memories are now”

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