SENTIMENTOS
Em 2003, por ocasião da publicação de Nocturama, confortavelmente instalado numa suite de um hotel londrino, Nick Cave dizia-me: ”Já não chafurdo tanto no sofrimento e na abominação, procuro sair disso através de alguma forma de redenção. É um pouco aquela ideia de Oscar Wilde de estarmos com os pés na sarjeta mas com os olhos nas estrelas. Dantes, eu estava com os pés na sarjeta e a olhar para a sarjeta”. E, perante a interrogação de se isso significava ser mais feliz, atalhou: “Não sei o que é a felicidade. A felicidade é um sentimento e, para mim, tentar compreender o que é a felicidade é como procurar apanhar um rato morto numa cave. Parece-me que os sentimentos estão muito sobrevalorizados e preocupamo-nos demais com a forma como nos sentimos. O que eu faço é trabalhar. Levanto-me de manhã e não examino os meus sentimentos. Sento-me ao piano e escrevo. Os sentimentos são um conceito do final do século XX. E suspeito que, à medida que o século XXI for avançando, os sentimentos irão ter muito pouco a ver com tudo. Os sentimentos são um luxo dos ociosos. Eu trabalho”.
Em One More Time With Feeling, documentário de Andrew Dominik em torno da gravação de Skeleton Tree, a começar pelo próprio título, há sentimentos, só sentimentos e nada mais do que sentimentos. Dificilmente poderia ser de outra forma uma vez que todo o processo de filmagem ocorreu pouco depois da morte de Arthur Cave, filho adolescente de Nick e Susie Bick, em Julho do ano passado, consequência da queda de uma escarpa, em Brighton, após ingestão de LSD. E é isso – nunca explicitamente nomeado durante todo o filme mas apenas referido como “the event” – que paira como uma assombração e atribui um acréscimo de sentido às imagens e à música, mesmo que grande parte desta estivesse já escrita antes do desaparecimento de Arthur. A grande questão, contudo, é saber se esse acréscimo é ou não um factor positivo para a economia de um filme que, aqui e ali, parece menos um documentário – registo de acontecimentos, declarações, testemunhos – do que algo razoavelmente encenado: o Nick Cave que se olha ao espelho e, surpreendido, repara nas olheiras que não tinha antes, foi apanhado assim, sem preparação? A exibição que Susie faz do quadro em que Arthur desenhou o local onde viria a morrer foi uma ideia surgida no momento?...
Não seria, naturalmente, uma heresia a criação de um documentário “híbrido”. O quase videoclip de "Distant Sky" (única sequência a cores) até não provocaria atrito, não se tratasse de um instante de intenso "kitsch", culminando num "zoom out" cósmico sobre o planeta enquanto a voz canta “Let us go now, my only companion, set out for the distant skies, soon the children will be rising” – coisa bem diversa do muito mais sóbrio "Jesus Alone", com o diálogo de imagens entre Cave, ao piano, e a secção de cordas (que Warren Ellis dirige como quem comanda a energia das marés), no qual Dominik abdica dos constantes movimentos circulares da câmara de que, noutras ocasiões, abusa. Exactamente o mesmo desequilíbrio que acontece entre a forma enxuta como Nick Cave afasta todo o tipo de baixo sentimentalismo para evocar a terrível perda e a desnecessária demagogia fácil de incluir no genérico final "Deep Water", uma canção de Cave e Marianne Faithfull, cantada por Arthur e pelo gémeo Earl.
2 comments:
Sei - creio que todos sabemos, os que te lemos -o quanto és criticado por uma qualquer espécie de frieza diante de muitas questões. Não se trata de um jogo de futebol, aqui/em qualquer outro texto, mas o teu remate é de uma beleza extrema. E de um respeito above all, com o Cave, quando sabemos do(s) facto(s).
Merci, as a human being, as a mum :)
"o quanto és criticado por uma qualquer espécie de frieza diante de muitas questões"
A sério? Juro que nunca me tinha apercebido.
Vou n'avez pas de quoi.
)*
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