Brooker/Bowie
“David Bowie é um mosaico. Uma obra de arte e uma obra de vida criadas por David Robert Jones durante um período de 50 anos. Ele é, talvez, a maior obra de arte dos séculos XX e XXI. O artista, David Jones, já não está entre nós mas a sua criação ‘David Bowie’, permanece”. A afirmação é de Will Brooker, escritor e professor de Film and Cultural Studies na Kingston University de Londres, um dos cerca de 30 académicos de múltiplas origens (Reino Unido, Irlanda, Itália, Canadá, Bélgica, Portugal, Finlândia, Espanha, Turquia, EUA, Austrália, Brasil, Alemanha, Nova Zelândia, França) convidados a participar na conferência
“David Bowie: Interart/Text/Media” organizada pelo Centro de Estudos Anglísticos da Universidade de Lisboa, entre os próximos dias 22 e 24.
Pode, sem exagero, dizer-se que Brooker conhece aquilo de que fala, literalmente, por dentro e por fora: durante um ano – concluído em Junho último – dedicou-se a encarnar, cronologicamente, as diversas personae de Bowie, adoptando os seus hábitos alimentares, vestindo-se e maquilhando-se como ele, visitando os lugares por onde ele passou e lendo as mesmas obras que ele leu. “Foi uma experiência inspiradora e transformativa mas também, por vezes, difícil e emocionalmente esgotante. Creio que me proporcionou uma perspectiva única e um entendimento de Bowie verdadeiramente diferentes”. Todo o processo ficou documentado num filme, Being Bowie, que será estreado na conferência, e num livro (Forever Stardust: David Bowie Across The Universe), a sair no início do próximo ano.
E isso terá contribuído para a convicção de que, por trás da sucessão de personagens, nunca existiu realmente um "storyboard" oculto: “Observando retrospectivamente, podemos supor que havia uma narrativa. Mas, ao mesmo tempo, penso que Bowie, ao transitar de uma para outra persona, apenas fazia aquilo que lhe parecia necessário. É preciso não esquecer que as personae mais celebradas ocuparam um curto período da sua vida e carreira: Ziggy Stardust, Aladdin Sane e o Thin White Duke só nos levam de 1972 a 1976. Podemos ver o ‘Bowie de Berlim’ como uma persona, ou os anos 80 como outro tipo de máscara ou performance. Mas nunca foram assim nomeados por ele. Major Tom e Halloween Jack, por outro lado, são apenas personagens de canções, coisa completamente diferente da imersão total em Ziggy Stardust. Mesmo Aladdin Sane é pouco mais do que um nome e uma evolução a partir de Ziggy. Podemos encontrar-lhe um sentido: uma superação urgente e aceleração (Ziggy), um observador cínico e exausto da vida das celebridades na América (Aladdin Sane), um frio curioso pelo fascismo e pelo oculto alimentado a cocaína e paranóia (Duke) e a fuga para um estilo de vida mais estável de recuperação física e artística em Berlim. Visto assim, é uma história, Mas, retrospectivamente, a vida da maioria das pessoas também parece ser uma história”.
Não heveria, no entanto, um Bowie essencial, presente em todas essas figuras e manipulando-as? “’Bowie’ foi, evidentemente, a criação mais duradoura de David Jones. Havia, certamente, um David Jones essencial por trás de todas – por vezes, deliberadamente marginalizado, outras vezes, mais central –, embora eu pense que, em determinados pontos dos anos 70, ele se perdeu. Todas reunidas, as diferentes identidades e performances constituem o mosaico que é ‘David Bowie’ enquanto obra de arte completa”. E, segundo Will Brooker, essa proliferação de heterónimos, corporização exuberante do ”Je est un autre”, de Rimbaud, nem sequer se poderá explicar como tentativa de contruir uma narrativa através de um "cut-up" biográfico: “Um cut-up pressupõe uma peça acabada que é, depois, fragmentada e reescrita. As várias fases e identidades foram influenciadas pela cultura e os diversos contextos em torno dele e pelo que ia experimentando”.
Em 1993, por altura de Black Tie White Noise, Bowie confessara-me que, desde 1976, tinha posto fim à ao processo de reinvenção. Daí em diante, tudo não fora mais do que uma “escolha de guarda-roupa diferente”. Brooker não vê nisso mais do que uma das suas frequentes provocações ainda que contendo alguma verdade: “Não me parece que ele se limitasse a trocar de guarda-roupa nos anos 80, quando se reinventou como superstar global para a geração-MTV. Penso que procurava uma nova forma de operar num novo mercado de massas mais conservador e, nesse momento, não estava a ‘ser ele próprio’. O período de Let's Dance/Tonight/Never Let Me Down, de certa forma também implicou a criação de uma outra personagem de homem de negócios, homem do povo, um tipo ‘normal’. Ele tinha uma enorme atracção por 'outsiders', por cultura, arte e personagens marginais, experiências extremas, tendências obscuras e grupos minoritários, houve sempre uma sensação de quebrar fronteiras durante toda a sua carreira. Houve momentos em que vacilou, quando pretendeu ser mais mainstream e popular. Mas a periferia fascinava-o genuinamente. Era, sobretudo, curioso, sempre à procura do novo: aborrecia-se com facilidade, era frequentemente impaciente, infinitamente interessado em fazer descobertas”.
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