02 June 2016

DIZER A VERDADE


Em Fevereiro do ano passado, aquando da atribuição do galardão MusiCares Person Of The Year pela National Academy of Recording Arts & Sciences, Bob Dylan – como não faz desde que, há doze anos, publicou o primeiro (e, até agora, único) volume das Chronicles –, no discurso de aceitação, abriu o baú das memórias e falou sobre as suas canções e tudo o que, em torno delas, gira. Começou por afirmar que as vê enquanto "'mystery plays' do género daquelas a que Shakespeare assistiu quando jovem; suponho que a origem do que faço poderá recuar até aí. Estavam nas margens e nas margens continuam, após uma caminhada por terrenos escarpados”. A seguir, depois de oferecer uma pessoalísima definição dos blues (“são uma combinação de violinos árabes e valsas de Strauss a tentar resolver um problema”), enumera diversas peças e autores e, a partir deles, estabelece a genealogia do seu cancioneiro: “Não se deixem enganar, todas estas canções estão relacionadas. Apenas abri outra porta de um modo diferente, dizendo o mesmo. Não me pareceu nada de extraordinário, pensei que era uma coisa muito natural. Estas canções não cairam do céu, tinham uma ascendência: a folk tradicional, o rock’n’roll tradicional e as big-bands de swing tradicionais”.



Nas Chronicles, tinha já dito algo semelhante quando confessara que “nas canções de Harold Arlen, conseguia ouvir os blues rurais e a música folk”. Não espanta nada, por isso, que tanto em Shadows In The Night, do ano passado, como, agora, com Fallen Angels – volumes I e II da expedição ao Great American Songbook – se tenha lançado sobre o reportório de Arlen mas também de Johnny Mercer, Hammerstein & Rodgers, Irving Berlin, Jimmy Van Heusen, Hoagy Carmichael, Sammy Cahn e vários outros clássicos, unidos pela circunstância de todas as canções (à excepção de "Skylark") terem sido interpretadas por Frank Sinatra. De certo modo, é também uma forma elegante de reparar a injustiça de há meio século quando foi um dos responsáveis por todos esses terem sido expeditamente despachados para o arquivo morto da história da música popular norte-americana (na introdução de "Bob Dylan’s Blues", em The Freewheelin’ Bob Dylan, 1963, podemos escutar a sua gabarolice juvenil de que “ao contrário das canções que, hoje, vêm lá de cima, da Tin Pan Alley, na 'uptown' de Nova Iorque, esta não foi escrita lá, escrevia-a cá em baixo, nos Estados Unidos”), como se os tempos que estavam a mudar precisassem obrigatoriamente de apagar o tempo que os precedia.


Mas, há um ano, em Los Angeles, Dylan, pensando muito provavelmente nos que torceram o nariz à ousadia de abordar o reportório de Sinatra, não conseguiu também impedir-se de disparar: “Há críticos que dizem que canto como um sapo. Porque é que não dizem o mesmo de Tom Waits? Dizem que não tenho voz. E Leonard Cohen? Porque tenho eu um tratamento especial? Dizem que desafino e falo mais do que canto. A sério? Nunca ouvi isso acerca de Lou Reed”. E, socorrendo-se de uma figura de autoridade, contou que Sam Cooke, quando lhe elogiaram a sua bela voz, respondeu:”É muito amável mas as vozes não devem ser avaliadas pela beleza. Apenas são importantes se são capazes de nos convencer que estão a dizer a verdade”. E, em Fallen Angels, logo na primeira faixa, "Young At Heart", diz uma verdade, (“If you should survive to 105, look at all you'll derive out of being alive! And here is the best part, you have a head start if you are among the very young at heart”) que é seguramente mais convincente na boca de um homem de 75 anos do que na do Sinatra de 38 que a gravou em 1953.

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