22 March 2016

GOSTAR DAS TREVAS


“Ouvia o meu coração a bater. Ouvia o coração de toda a gente. Ouvia o ruído humano que fazíamos, sem que nenhum de nós se movesse, nem sequer quando a luz da sala se apagou. Quando vivemos durante tanto tempo nas trevas, começamos a gostar delas. E elas a gostarem de nós. O rosto vira-se para as sombras e elas aceitam, curam. Mas também devoram. Alguma coisa morreu em mim. Foi preciso muito tempo mas, agora, morreu. Apetecia-me ir ao pátio e gritar ‘Nada disto vale a pena!’ Não sei o que me irá acontecer nem a qualquer outro neste mundo. Noites sem início que não têm fim. A falar sobre o passado como se ele tivesse realmente acontecido. Tentando convencer-se que, para o ano, por esta altura, as coisas irão ser diferentes. No fim, as palavras são tudo o que temos e é bom que sejam as palavras certas”. O que acabaram de ler é uma montagem de citações de Raymond Carver, ele do "dirty realism" literário norte-americano. 



Considerem, agora, esta outra: “He'd wake up in the middle of the night, his heart racing so fast that he thought he was dying but it wouldn't go away, it wouldn't go away, so he'd go running and he'd keep running until he couldn't think anymore. We came home one night and our door was open, most of our things were gone or broken, all our clothes were thrown around the rooms and even our pictures were wrecked too, and the overpass where the endless miles of cars would pass, it hummed night and day and night and day, we used to think it sounded like a river, but all that slipped away that day. In the morning I'd go home, she'd be up all night from crying alone, watching a credit card TV and holding a credit card phone, sitting on a credit card couch still in her mom's beat up and ugly robe”. Carver também? Não, Willy Vlautin, dos Richmond Fontaine e Delines, mas igualmente romancista premiado. Gente da mesma família. Os Fontaine chegaram ao fim e You Can't Go Back If There's Nothing to Go Back To (magnífico, como os anteriores, por vezes, também arrepiantemente dylaniano) é o ponto final. Quando uma débil esperança espreita, ouve-se “it’s a wonderful world if you put aside the sorrow, better take the time to know it if you feel anything at all”. Não adianta respirar fundo, de alívio: os Delines vão continuar.

2 comments:

t. said...

Sem qualquer ironia, o cavalo da capa é-me obsessivamente empático. Irrepreensível (o grafismo, o título e demais lírica, a música e o texto que induziram).

Táxi Pluvioso said...

Richard Littler, a anti-república dos afetos de Scarfolk:

http://www.collectorsweekly.com/articles/visiting-scarfolk/