09 March 2016

DESCONFORTO

  
A 10 de Fevereiro passado, no blog Atalho de Sons, Luís Peixoto, a propósito da actual revisitação de Music For A New Society, de John Cale, pelo próprio autor, escrevia: M:FANS, embora partindo das mesmas canções, é outra coisa muito diferente. Quem sabe, talvez um dia me sinta suficientemente confortável para sobre ele dissertar”. Quase um mês depois de o ter recebido, também eu fui adiando esse momento e continuo a sentir-me tudo menos confortável para redigir meia dúzia de linhas acerca dele. Por um claríssimo motivo: quando deparamos com alguém que não descobriu melhor ocupação do que a de estropiar obra-prima alheia, é fácil recorrer aos piores instintos e crucificar impiedosamente o profanador. Mas, se este é o criador original da peça violentada, tudo se torna demasiado problemático. Music For A New Society (1982), como, da mesma dimensão, Songs Of Love And Hate, de Leonard Cohen, é não só uma das mais avassaladoras colecções de canções de sempre, mas, igualmente, um daqueles exercícios de funambulismo existencial com o precipício em fundo – aqui, poderá juntar-se-lhe The Drift, de Scott Walker – que, irremediavelmente, marcam a fogo quem se lhes atravesse no caminho. 



Dele, Cale diria: “Foi uma agonia. Um acto de loucura. Deixei-me arrastar. Tornou-se uma espécie de terapia, um exorcismo pessoal. Não me agrada a ideia de encarar a música de uma forma descontraída mas ter de chegar a tais extremos foi, realmente, excessivo”. Implacável canto fúnebre endereçado aos ainda vivos, estertor final só residualmente catártico – tantos e tais demónios não se deixam expulsar sem encarniçada resistência – Music For A New Society era tudo menos aquilo a que se poderia chamar “uma obra do seu tempo”. Ou de qualquer tempo. Inexplicavelmente, M:FANS ambiciona ser de 2016: o que no álbum de 1982 era esparso, meras sombras de outras sombras despenhando-se sobre um cenário de destroços, agora, obedecendo a uma obsessão de preencher todos os espaços vazios em prol do "updating" e do "enhancing", recorre a uma despropositada sobrecarga de efeitos de produção que nem do ridículo "auto-tune" abdica. Ignoro o que, sobre mim, isto dirá mas a minha opinião é idêntica à do “Financial Times”: “na melhor das hipóteses, apenas uma curiosidade”

6 comments:

alexandra g. said...

Nunca gramei aquela expressão "ter um dom", sempre me cheirou a resina: escorrência, ferida, mais do que oferta. Tu, no entanto, escreves sobre música (desta vez li o E no dia :) de uma forma que arrebenta com os supostos dons: eu, que não percebo um cu de música (?!?), mas percebo bastante de cus (i'm an expert :) fiquei deliciada com este texto, com a generosidade, a honestidade de quem foi protagonista e de quem redigiu o que eu li.

E repito: a minha ignorância não me reduzirá jamais à pior forma da qual ela se reveste, a saber:

- esperar que te coloquem um dia na lapela uma medalha, que te ofereçam uma taça, por tamanha lucidez (que disso percebo também eu :)

___
Congrats, you great JBG.

João Lisboa said...

"mas percebo bastante de cus (i'm an expert :)"

É o género de "expertise" que importa.

:-)

Anonymous said...

sinceramente , gosto bastante do anterior trabalho,Nookie Wood,apesar do auto-tune(sim,esse som é irritante),tem optimas canções...mas agora,fiquei apreensivo perante este texto.

João Lisboa said...

É ouvir.

Anonymous said...

já ouvi(na net) e...gosto.alias,não tenho discernimento possivel para um musico que gosto tanto.um homem que escreve o "soul of carmem miranda"(que foi cantada pelos real combo lisbonense em Lisboa)e a deixa a marinar por 30 anos,que pinta o cabelo cor de rosa e não perde a face.Alias o John Cale ,sozinho, inventa um genero diferente para cada disco.Por isso eu acho que ele representa os transgeneros destes mundo(ou seja,não o sexo,mas mais do tipo marroquino que gosta muito de metal pesado e não fuma haxe,ou um esquimó que lhe dá nos drones e bebe vinho do alentejo,etc...ou um Marr sul africano)

João Lisboa said...

"marroquino que gosta muito de metal pesado e não fuma haxe,ou um esquimó que lhe dá nos drones e bebe vinho do alentejo,etc...ou um Marr sul africano"

:-)

Também gosto muito disso tudo http://lishbuna.blogspot.pt/2016/01/nenhuma-bandeira-nao-estara-proximo-de.html

Mas, por mais que admire o Cale, não consigo digerir o M:FANS.