09 February 2016

REMOÍNHO 


Não Nos Deixeis Cair Em Tradição é uma extraordinária contradição. Sucessor de Dêem-me Duas Velhinhas, Eu Dou-vos O Universo (2013), e produto natural do projecto de Tiago Pereira “A Música Portuguesa A Gostar Dela Própria”, desta vez, é assinado por Tiago e Sílvio Rosado sob a designação Sampladélicos. Mas, tanto no texto do "press release" como nas notas da contracapa, apresenta-se como “um documento para o futuro, uma posição ética e política”, criado sem “sons provenientes de softwares para compor música” nem “caixas de ritmos e beats estrangeiros” mas “com coisas vivas, com pessoas, com sons orgânicos, muitos com tendência a desaparecer”. Ou seja, nesta imensa e intensamente tecnológica operação de manipulação e reconfiguração de fragmentos sonoros – bênçãos de gado, violas de arame, adufeiras, amoladores, poetas populares, bombos de bandas filarmónicas, cavaquinhos, polifonias meridionais e nortenhas –, conduzida, por vezes, até ao estado de puríssima abstracção encantatória ("Embala o Menino na Torre e no Berço", "A Volta a Portugal em Samplers", "Polifonia do Menino Jesus", "É do Outro Mundo", "O Fado do Bombo da Aldeia"), parece ainda sobreviver a necessidade de legitimação pelo estatuto supostamente “orgânico”, “natural” e “tradicional” daquilo que, obviamente, não é mais do que mera matéria-prima sobre a qual se exerceu o trabalho de criação. 



A que acresce a velha preocupação da impossível “salvação” de espécimes em risco de extinção e – inquietantemente próximo dos mais perigosos reflexos identitários – o repúdio dos “beats estrangeiros” (seja lá isso o que for). A (muito) boa notícia é que, na verdade, os Sampladélicos apenas se deixaram “cair em tradição” no que à despropositada justificação “ética e política” da obra diz respeito: tal como já acontecera com Dêem-me Duas Velhinhas... e, sobretudo, no primordial garimpeiro do veio sampladélico luso, Sexto Sentido, da Sétima Legião (1999), o que, essencialmente, fica é um magnífico painel de colagens, um vertiginoso remoinho de instantes infinitamente repetidos, distendidos, sobrepostos, esquartejados e deslocados, portal de acesso a um universo decididamente sem tempo nem lugar, onde o que menos importa para a descolagem do voo é o certificado de origem.

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