27 November 2015

CÃO VADIO


Quando, em Setembro de 2001, uma semana e um dia após o atentado ao World Trade Center, Laurie Anderson actuou no Town Hall de Nova Iorque, um calafrio circulou entre público e palco durante a enunciação dos textos de peças como "Strange Angels" (“Big changes are coming, here they come, here they come”), "Let X=X" ("I feel like I am in a burning building... I gotta go"), e, sobretudo, "Oh Superman" ("Well, you don't know me, but I know you, and I've got a message to give to you: here come the planes, they're American planes, made in America. And the voice said: neither snow nor rain nor gloom of night shall stay these couriers from the swift completion of their appointed rounds”). Incluir ainda na set list "From The Air" (“This is your Captain. We are about to attempt a crash landing. Please extinguish all cigarettes. (…) Your Captain says: Put your head on your hands. This is your Captain and we are going down. We are all going down, together”) teria sido carregar demasiado dramaticamente o momento.


Especialmente, tratando-se de Anderson que, seis anos antes em "The Cultural Ambassador", citando Don De Lillo, afirmara que "os terroristas são os derradeiros artistas que restam pois são os únicos capazes de verdadeiramente nos surpreender" (mais tarde, confrontada com isso, justificar-se-ia: “A questão, quando se escreve sobre estética e política, é que a política e a arte estão sempre a mudar. Há um tempo e um lugar certos para abordarmos determinadas ideias que não são sempre necessariamente verdadeiras”). No novo Heart Of A Dog – banda sonora do seu filme homónimo –, porém, uma outra "From The Air" surge: nela, Laurie Anderson conta como, tendo-se refugiado na Califórnia a seguir ao 11 de Setembro, durante um passeio pela montanha com a cadela Lolabelle, de súbito, esta se viu ameaçada por um falcão que as sobrevoava. Nesse instante, nos olhos da "rat terrier", leu exactamente o mesmo espanto que vira no rosto dos novaiorquinos: ela descobria-se na situação de presa e o predador atacava pelo ar. Um pouco antes, em "Birth Of Lola", começara a maravilhosamente errática exploração de mais outro colar de pérolas sterneano (“Chamo-lhes histórias de cão vadio: vão por aqui, por acolá, viram uma esquina, dão quinze voltas ao quarteirão antes de voltarem ao presumível tema. E Laurence Sterne foi o mestre desse tipo de escrita”) desencadeada pela senha “This is my dream body, the one I use to walk around in my dreams”.



E, no sonho, Laurie encontra-se na sala de partos de um hospital, dando à luz Lolabelle. Logo a seguir, o cenário é o do leito de morte da mãe e dos animais que ela vê no tecto e com os quais conversa; depois, a ínvia relação entre as directivas da Homeland Security (“If you see something, say something”) e, segundo Wittgenstein, o poder da linguagem na criação do mundo; as outras perdas – Lou Reed, Gordon Matta-Clark, também Lolabelle – e o suave apaziguamento que a filosofia oriental lhe emprestou; ou ainda uma história acerca de como contar histórias é também um processo de apagamento de memórias... numa estrutura líquida, articulada por "inserts" instrumentais do Kronos Quartet, aguadas electrónicas, som ambiente. Algo próximo de um hipnótico filme sem imagens de que apenas nos aperceberemos que poderão fazer falta se nos informarem que se trata, de facto, de uma banda sonora.

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