28 March 2015

CONTRA-NATURA 


Não foi, de todo, imerecidamente que a má reputação dos "singer-songwriters" da década de 70 – em particular, os que tinham selo de origem em Laurel Canyon – se lhes colou à pele: o estereótipo era o da lamúria confessional a propósito das inúmeras desventuras e catástrofes sentimentais, acerca das quais era fácil imaginar os lacrimejantes autores hesitando entre aplicar a lâmina da barba à artéria radial ou tomar notas, pegar na guitarra e encarar o infortúnio como belíssima matéria-prima para o próximo álbum. Esmagadoramente, a segunda hipótese prevalecia e não será por se tratar de um estereótipo que anda demasiado longe da verdade. Nos últimos 40 anos, a epidemia foi controlada mas não definitivamente debelada; tanto assim que continua a fazer vítimas junto de quem se suporia mais inexpugnavelmente imune. Tomemos, então, conhecimento de que o matrimónio de mais de uma década de Björk Guðmundsdóttir com o artista e cineasta Matthew Barney chegou ao fim e que ela fez questão de registar exaustivamente todo o processo em Vulnicura – sobreposição do latim, vulnus (ferida), e cura –, anunciando logo na primeira faixa, com determinação de arquivista, “I’d better document this”



O método é cronologicamente obsessivo (as canções são datadas pelo número de meses antes da separação) mas, acima de tudo, obriga-nos a uma atitude absurdamente contra-natura: se desejamos, verdadeiramente, desfrutar da óptima música que o disco oferece, há que ser obstinadamente surdo aos textos. Sim, os riquissimamente texturados tapetes sonoros do U Strings Ensemble, dinamizados ou dilacerados pela sobrenatural máquina de "beats" de Arca/Alejandro Ghersi e adensados pela patine de The Haxan Cloak/Bobby Krlic (Michael Pärt, filho de Arvo, enquanto "recording supervisor", terá tido também alguma palavra a dizer), convivem mal, muito mal, com o que se assemelha demasiado a embaraçosos extractos de ficha clínica de gabinete de psicologia ou de diário de adolescente problemático (“Every single fuck we had together is in a wondrous time lapse, with us here at this moment”, “I have emotional needs, I wish to synchronize our feelings”, “Family was always our sacred mutual mission which you abandoned, you have nothing to give, your heart is hollow”...). Ignoremo-los. Nunca existiram.

5 comments:

Táxi Pluvioso said...

Pela natura:

https://www.youtube.com/watch?v=djc3cR4rzkg

Nuno Gonçalves said...

"Ignoremo-los. Nunca existiram."

Para facilitar o exercício de abstracção, podemos também imaginar que os textos ...estão em islandês

João Lisboa said...

O sotaquezinho ajuda bastante.

alexandra g. said...

Ficaste mesmo mau com a garota :)
Mesmo assim, estou curiosa (ah, Sophie Calle!) e, como a minha bílis de idêntica origem até já acalmou, aproveitarei para dançar :)

João Lisboa said...

"Ficaste mesmo mau com a garota"

A garota, brevemente cinquentona como as melhores :-), tem é de (re)ganhar juízo.